A importância de A Constituição contra o Brasil de Roberto Campos
Sobre os autores e a obra
Roberto de Oliveira Campos nasceu em 17/4/1917, em Cuiabá/MT, e faleceu em 9/10/2001, no Rio de Janeiro/RJ. Oriundo de família humilde (seu pai era professor e sua mãe, costureira), ficou órfão de pai aos cinco anos. Ao longo de sua carreira, exerceu diversos cargos e mandatos no serviço público federal: foi diplomata nos Estados Unidos (onde cursou mestrado em Economia na Universidade George Washington); integrou o segundo governo de Getúlio Vargas, sendo um dos criadores do atual BNDES, que presidiu entre 1958 e 1959; participou do governo Juscelino Kubitschek, com papel importante na elaboração do Plano de Metas; foi embaixador do Brasil em Washington — no governo João Goulart — e em Londres — no governo Ernesto Geisel; atuou como ministro do Planejamento no governo Castelo Branco, quando, ao lado de Octávio Gouveia de Bulhões, então ministro da Fazenda, implementou reformas modernizadoras na economia e na administração pública.
Fez parte de um grupo de economistas notáveis responsável pela criação do Banco Nacional da Habitação (BNH), do salário-educação, do cruzeiro novo, da indexação de preços por meio da correção monetária, do novo Código Tributário Nacional de 1966, do Banco Central do Brasil, do FGTS e do Estatuto da Terra. Também foi autor dos artigos econômicos da Constituição de 1967. Foi senador da República pelo Mato Grosso (1983–1991) e deputado federal pelo Rio de Janeiro (1991–1999). Autor de diversas obras sobre economia, sociologia e filosofia, foi eleito para a cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras.
Campos ficou conhecido por suas posições firmes e polêmicas em defesa do liberalismo, sem se importar com críticas às suas convicções — sendo, por vezes, voz solitária no Congresso na defesa da economia de mercado e da liberalização do comércio exterior. Iniciou sua trajetória como keynesiano, mas tornou-se, ao longo do tempo, um discípulo de Hayek.
Nas palavras do diplomata, crítico literário e escritor José Guilherme Melquior: “com relação a Roberto Campos, existem três tipos de atitudes brasileiras: as várias que apreciam sua excepcional lucidez; os muitos que a ela resistem, com obstinada irritação; e aqueles, inúmeros, que secretamente o reconhecem – mas jamais o confessariam de público, de puro medo do patrulhamento ideológico mais ferrenho e mais imbecil com que o Brasil impensante já brindou alguém”.
Paulo Roberto de Almeida, organizador da obra, nasceu em São Paulo, em 19/11/1949. É diplomata de carreira e professor universitário. Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Livre de Bruxelas, em 1974, e obteve o mestrado em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, em 1976, com dissertação sobre o comércio exterior brasileiro. Ingressou por concurso direto na carreira diplomática em 1977 e concluiu seu doutorado em Ciências Sociais na mesma Universidade de Bruxelas, em 1984, defendendo uma tese sobre as relações entre poder político e desenvolvimento capitalista no Brasil.
Quanto ao livro em questão, A Constituição Contra o Brasil – Ensaios de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988, o organizador define seu trabalho como uma espécie de tributo moral à obra de Roberto Campos, a qual, conforme ele próprio admite, norteou sua formação não apenas no campo econômico, mas também nas relações internacionais, na política brasileira, na análise comparativa do desenvolvimento dos países latino-americanos e asiáticos, na cultura universal e na literatura. Seu lançamento, em 2018, se deu pelo fato de a Constituição Federal de 1988 estar completando 30 anos — tempo razoável para que seus efeitos práticos na vida política, econômica, social e cultural do Brasil pudessem ser avaliados não apenas por especialistas, mas também percebidos pela sociedade brasileira.
Resenha
A presente obra consiste na reunião de 60 artigos escritos por Roberto Campos em diversos jornais e revistas brasileiros, bem como em obras de sua autoria, ao longo do período de 6/1/1985 a 28/4/1996 — ou seja, desde a eleição de Tancredo Neves até o final do processo revisional previsto pela própria Constituição de 1988. Os artigos foram organizados em duas partes: Parte I – “Irracionalidades do processo de reconstitucionalização”, cujos textos abordam o início da chamada Nova República e o processo de elaboração da Constituição de 1988; e Parte II – “As utopias bizarras da nova Constituição”, com artigos dedicados às diversas alterações no texto constitucional ocorridas até 28/4/1996 (onze Emendas Constitucionais ordinárias e seis Emendas Constitucionais de Revisão).
Antes dos artigos da Parte I, o leitor encontra o Prefácio e o texto “Roberto Campos e a trajetória constitucional brasileira”, ambos escritos pelo organizador. No Prefácio, estão expostos os motivos para a organização do livro e, no texto subsequente, um panorama das ideias de Roberto Campos e de sua trajetória profissional como economista, diplomata e parlamentar, com passagens pelos governos de Vargas, JK, Jânio Quadros, João Goulart e durante o regime militar.
Ao final da Parte II, há um texto intitulado “A Constituição brasileira contra o Brasil: Uma análise de seus dispositivos econômicos”, em que o organizador apresenta sua própria leitura crítica dos dispositivos constitucionais que, em sua visão, atrapalham o desenvolvimento econômico, político e social do país, corroborando diversas análises feitas por Roberto Campos — muitas delas com três décadas de antecedência.
Uma das frases favoritas de Roberto Campos — “O Brasil não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade” — sintetiza com precisão os diversos temas abordados ao longo dos artigos organizados. A leitura dos textos revela a notável habilidade de Campos para tratar de assuntos densos e complexos com impressionante leveza e simplicidade, recorrendo a uma ironia refinada e a um sarcasmo mordaz que tanto irritavam seus opositores e críticos.
De forma geral, percebe-se nos artigos uma constante preocupação com temas como economia, relações exteriores, política interna e externa, além da organização institucional do Estado brasileiro. A seguir, apresenta-se uma seleção não exaustiva do posicionamento do autor em relação aos temas mais recorrentes na obra.
Liberalismo econômico
Campos defendia a livre iniciativa, a privatização de empresas estatais e a redução do papel do Estado na economia. Era um crítico ferrenho do dirigismo estatal, argumentando que o excesso de regulamentações e a intervenção governamental sufocavam o crescimento econômico. Suas ideias eram profundamente influenciadas pelo liberalismo clássico, com forte ênfase na importância do mercado e na limitação do poder estatal.
Organização político-partidária brasileira
O autor fazia duras críticas à cultura política nacional, que considerava marcada pelo populismo, clientelismo e corrupção. Defendia reformas institucionais como meio de fortalecer a democracia e o Estado de Direito. Demonstrava também grande preocupação com o nacionalismo exacerbado, que via como um entrave à inserção do Brasil no mercado global.
Campos criticava o sistema eleitoral brasileiro, que promovia a fragmentação partidária e a proliferação de legendas com pouca representatividade. Propunha medidas para fortalecer os partidos políticos e reduzir seu número, com vistas a uma maior estabilidade política e governabilidade.
Nova República
Começando pela eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência da República pelo colégio eleitoral, Roberto Campos descreve com maestria as apreensões e esperanças daquele momento histórico. É quase possível ouvir “Coração de Estudante”, na voz de Milton Nascimento, ecoando nos programas de rádio e televisão e nas passeatas pelas “Diretas Já” de 1984 e 1985.
Naquele contexto, o Brasil atravessava uma fase política e econômica difícil: após um longo regime militar, havia inflação alta e dívida externa crescente. Politicamente, o país vivia a expectativa da redemocratização, com a Nova República simbolizando o rompimento com o regime anterior e a transição para o governo civil.
Durante esse processo, Campos expressava preocupação com os caminhos que o país poderia trilhar. Temia que políticas econômicas irresponsáveis fossem adotadas e que a nova Constituição criasse entraves ao desenvolvimento sustentável — aqui entendido como duradouro, e não no sentido ambiental que hoje se atribui ao termo.
Processo de elaboração da Constituição Federal de 1988
Campos demonstrava sérias preocupações quanto à Constituição de 1988, argumentando que ela continha excessivos dispositivos que ampliavam os gastos públicos e limitavam a capacidade do governo de conduzir políticas econômicas responsáveis. Chamava de “dicionário de utopias” o conjunto de direitos sociais garantidos no texto constitucional sem considerar sua viabilidade econômica.
Para ele, a Constituição, em vez de impulsionar o desenvolvimento econômico, acabava por criar obstáculos ao crescimento e à estabilidade.
Organização jurídico-institucional do Brasil
Campos alertava para o risco de um Judiciário excessivamente poderoso, com tendência a interferir em áreas próprias do Legislativo e do Executivo. Criticava a expansão da interpretação constitucional, que poderia levar a decisões judiciais com grande impacto nas políticas públicas e na economia.
Demonstrava preocupação com a ausência de clareza na separação dos poderes, o que poderia gerar conflitos e instabilidade política. Defendia, portanto, um sistema de freios e contrapesos mais eficiente, que assegurasse a autonomia de cada poder e evitasse o excesso de influência de um sobre os demais.
Aplicação
Após a leitura do livro, o que mais chama a atenção é a atualidade dos textos — muitos escritos há mais de 30 anos —, o que evidencia a notável capacidade de Roberto Campos de compreender a realidade e antecipar os efeitos futuros das decisões e caminhos adotados no presente, além de sua habilidade em analisar contextos nacionais e internacionais.
A respeito de sua frase predileta — “O Brasil não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade” —, um dos fatos mais lamentados por ele foi a elaboração e promulgação de uma Constituição marcada por preconceitos e ressentimentos, num momento em que o mundo caminhava em direção oposta, como se evidenciou com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Enquanto as economias do antigo bloco socialista se abriam à captação de investimentos estrangeiros, o Brasil seguia na contramão, adotando políticas protecionistas e de intervenção estatal na atividade econômica por meio de regulações e taxações sobre importações. Ainda que, à época, fosse possível defender certa cautela na adoção da liberdade econômica, muitos dos vícios atuais da economia brasileira derivam da opção por uma excessiva participação do Estado. Seja de forma direta, por meio das estatais, ou indireta, por meio de subsídios e financiamentos a setores específicos, essa intervenção exacerbada agravou problemas antigos como o clientelismo, o corporativismo e o protecionismo — resultando em queda de produtividade e perda de competitividade nos bens e serviços produzidos no país.
No campo político, destaca-se sua assertividade quanto aos efeitos nocivos da excessiva pluralidade partidária, que compromete o debate sério e a formulação de soluções para os grandes problemas nacionais. Essa fragmentação é, inclusive, apontada como uma das causas do nosso presidencialismo de coalizão.
Na seara institucional, suas previsões também se confirmam, principalmente no que se refere à intromissão indevida do Poder Judiciário em matérias dos Poderes Legislativo e Executivo, o que compromete a harmonia e a independência entre os poderes. Atualmente, não faltam exemplos de usurpação da função legislativa por decisões monocráticas de magistrados, provocando insegurança jurídica e afastando ainda mais os investimentos, tanto estrangeiros quanto do empresariado nacional.
No campo econômico, o reflexo dessa insegurança jurídica e da intervenção estatal excessiva nas atividades produtivas corrobora as preocupações de Campos quanto à criação de direitos sociais desacompanhados de fontes claras de financiamento. Ainda que se reconheça o valor de políticas públicas para redução das desigualdades sociais e regionais, ao se criarem direitos trabalhistas e assistencialistas como se fossem meros desejos, sem contrapartida em produtividade, o resultado é o desaquecimento do setor produtivo e a redução de postos de trabalho, levando um número crescente de pessoas a depender de benefícios estatais.
Nesse ponto, cabe lembrar dois expoentes da escola austríaca de economia — Mises e Hayek — que, em suas obras, já alertavam que todas as liberdades civis (de expressão, de associação, religiosas, o direito à vida e à propriedade) decorrem da liberdade econômica. Onde esta é limitada, todas as demais também o são.
Por fim, um aspecto relevante é que Roberto Campos pode ser considerado um dos primeiros casos de “cancelamento de reputação”, usado como estratégia para descredibilizar suas ideias e evitar que seus argumentos chegassem ao público de forma íntegra. Não à toa, recebeu de seus críticos a alcunha de “Bob Fields”. Incapazes de rebater seus argumentos tecnicamente, recorreram à demonização de sua imagem pública, acusando-o de ser um defensor de interesses estrangeiros e de propagar o imperialismo estadunidense no Brasil.
Mesmo sobre isso, Campos demonstrava sua habitual perspicácia, aliada a uma dose de ironia e sarcasmo, ao afirmar, numa de suas frases célebres, que fazia questão de diferenciar nacionalismo de patriotismo: “a diferença entre patriotismo e nacionalismo é que os patriotas amam seu país, e os nacionalistas ‘desamam’ os outros.”
Parafraseando Roberto Campos, recomendo a quem ler esta resenha que não perca a oportunidade de ler, na íntegra, esta obra e outras de sua autoria. Constatará que não foi por falta de aviso que chegamos à situação em que nos encontramos enquanto povo, nação e sociedade. Suas observações sobre os problemas estruturais e institucionais do Brasil seguem atuais, e suas propostas ainda merecem análise e debate honestos e livres de preconceitos ideológicos.
*Lucio Meira de Mesquita é graduado em Engenharia Mecânica, servidor público federal e associado do Instituto de Formação de Líderes de Brasília (IFL-BSB).