O espetáculo da luta caricata
A publicidade virou o novo púlpito da moral seletiva, e os profetas do marketing, em vez de elevar o debate, apenas o convertem em mercadoria.
Ontem à noite fui a uma festa maravilhosa de uma amiga na Ilha da Pintada. Como costumo acordar bem cedo e havia tomado o néctar dos deuses – claro, um tinto honesto -, não descartei a hipótese de que algum resquício etílico ainda estivesse passeando pelos meus sentidos. Talvez por isso, ao abrir a geladeira pela manhã e me deparar com uma garrafa de Pepsi Black, fiquei, por um instante, em dúvida se o que eu via era real. A imagem estampada no rótulo me deixou, confesso, um tanto atônito: o jogador Vini Jr., com língua de fora, dedo em riste e uma expressão que misturava irreverência, desafio e deboche.
É como se tivessem transformado um drama humano legítimo em uma pose de Instagram. O ativismo de mercado tem esse talento cruel. Transforma dores reais em slogans com estética fashion e atitude pasteurizada. Um grito contra o racismo empacotado como refrigerante. Qual a próxima etapa? Lacração com sabor baunilha?
Evidente, a intenção publicitária é clara. Posicionar-se ao lado de uma causa nobre, a luta contra o racismo, associando a marca a uma figura que virou símbolo dessa pauta. Mas algo nesse tipo de propaganda me causa um profundo desconforto. Não pela gravidade do racismo, que é um mal a ser combatido sem concessões. O incômodo vem da forma como essa luta é encenada, de maneira caricaturada, quase banalizada, numa embalagem, como se a seriedade do tema pudesse ser reduzida a uma campanha de marketing visualmente “ousada” e emocionalmente rasa.
Não consigo deixar de pensar na função precípua do atleta, do artista, do cantor: sua arte, seu ofício, sua performance. É o futebol. É no campo que ele deveria se destacar, ser referência, buscar a excelência técnica. Mas a impressão que se forma é a de que ele – como tantos outros – se deixa seduzir pelo protagonismo fora de campo, pela atenção da mídia, pela vaidade das redes sociais e da militância performática.
Sim, ele foi vítima de racismo. Isso é inaceitável e precisa ser enfrentado com firmeza. Aliás, sou judeu, e conheço bem o que é ser alvo de preconceito. Mas o fato de ter sido vítima não o transforma automaticamente em exemplo a ser seguido, tampouco justifica qualquer atitude ou discurso. Há uma diferença entre ser símbolo e ser referência. O primeiro pode surgir por acaso; o segundo exige responsabilidade, ponderação e postura.
A propaganda é poderosa porque toca nossos sentimentos mais profundos, mas exige cautela. Quando marcas se apropriam de causas sociais apenas para parecerem “antenadas”, caem na armadilha do oportunismo, usando rostos conhecidos como aparências de posicionamentos que, no fim, são mais comerciais do que morais.
A lacração oportunista não se resume ao mundo do esporte. Alastrou-se pelo meio artístico, onde muitos cantores e influenciadores se alinham automaticamente ao discurso progressista, transformando pautas políticas em bandeiras de palco, muitas vezes desconectadas da realidade do cidadão comum. Em nome de uma suposta “consciência social”, embarcam em narrativas utópicas que só servem para alimentar projetos de poder que nada entregam de concreto.
Enquanto isso, o que se percebe, especialmente entre os jovens, é uma mudança de mentalidade. Há uma nova geração que parece menos encantada com fantasias revolucionárias e mais interessada em soluções reais: oportunidades de trabalho, segurança pública, acesso à saúde, crescimento econômico. É um clamor por pragmatismo, não por doutrinação. Por dignidade, não por discursos inflamados. Por resultados, não por narrativas.
Pessoalmente, desagrada-me seu desempenho no campo. A manifestação é livre! Mas penso que o atleta deveria se concentrar em ser grande naquilo que faz. O resto viria naturalmente. Talvez seja esse o nosso maior problema atual: a pirotecnia da sinalização de virtude. Dito de outra forma: a vaidade ocupando o lugar do mérito, a encenação tomando o lugar da essência. É a política do espetáculo tentando esconder o vazio da sua própria ineficiência.
Enquanto isso, seguimos vendo um gole de refrigerante valer mais que mil páginas de reflexão. Uma careta valendo mais que o caráter. Vai uma Pepsi Black? Duvidoso…