A treta das tarifas
O tarifaço anunciado pelo presidente Trump está dando o que falar. Em português atual, estão rolando muitas tretas. De um lado, liberais castiços argumentam acertadamente em defesa do livre-comércio e, portanto, contra o aumento tarifário e, do outro, conservadores genuínos, preocupados com os rumos do mundo e igualmente com razão, enfatizam que a estratégia de Trump vai além dos objetivos puramente econômicos, uma vez que o alcance visado está na restauração da primazia da América e na própria redenção do Ocidente.
Nessa disputa é difícil dizer quem está com a razão, ou melhor, quem tem mais razão, já que os dois lados apresentam argumentos plausíveis. Da minha parte, sempre fui, continuo sendo e sempre serei um economista que defende ferrenhamente os princípios liberais. Entretanto, desde que comecei a estudar sistematicamente Mises, Hayek e a mergulhar profundamente na Escola Austríaca de Economia, acostumei-me a ampliar os horizontes, uma vez que as atividades econômicas no mundo real não podem ser dissociadas dos demais campos da ação humana, como o Direito, a ciência política, a geopolítica, a psicologia, a história, a sociologia e a antropologia, e que a água que irradia essa interdisciplinaridade é a coleção dos valores éticos, morais e culturais dos indivíduos. O Homo economicus é uma ficção; o Homo agens, não.
Tarifas nunca foram boas
É sabido que ao longo da história da civilização poucos instrumentos mostraram tanta ineficácia econômica e debilidade moral quanto a imposição de tarifas sobre o livre-comércio de bens e serviços. Da velha Roma a Washington, de Atenas a Londres, de Constantinopla a Pequim, tributar o comércio é uma prática tão antiga quanto prejudicial.
As tarifas sempre são apresentadas como ferramentas bondosas para proteger a indústria local e salvaguardar empregos, mas a verdade é que elas invariavelmente se traduzem em um imposto sobre os consumidores, um freio à inovação, um desestímulo ao trabalho, um incentivo à especulação e um convite à retaliação comercial. O tarifaço de Trump, no aspecto puramente econômico, nada apresenta que possa ser chamado de “novo”: é a mesma lógica que norteava o portorium romano, um imposto sobre mercadorias que cruzavam certas fronteiras do império, ou o pentekoste ateniense de 2% sobre o valor das mercadorias importadas rumo ao Porto de Pireu. Não para incentivar a produção local, mas para financiar burocracias e guerras.
O que os liberais destacam é que toda tarifa é um obstáculo à cooperação voluntária: onde prevalece o livre-comércio, as pessoas cooperam, porque têm um interesse comum em fazê-lo; e, onde há restrições tarifárias, o comércio é distorcido, os preços são empurrados para cima e a eficiência é comprometida. Frédéric Bastiat, em um de seus contraexemplos mais famosos, argumentou com sua habitual sabedoria repleta de ironia que, se o comércio exterior é um mal, então não só o comércio entre países também deve ser limitado, como mais ainda entre cidades do mesmo país: “Se é útil proteger Marselha da concorrência de Gênova, por que não proteger também Paris da concorrência de Marselha?”. A lógica das tarifas, levada ao extremo, transforma-se em protecionismo universal, no fim das trocas voluntárias e, portanto, da própria civilização comercial.
Em Atenas, o imposto sobre o comércio não impediu Péricles de entender que o poder de uma cidade não estava em seu fechamento, mas em sua abertura. Sob sua liderança, a capital da Hélade se tornou um centro de comércio, ideias e liberdade: um porto que acolheu em vez de rejeitar. Sua visão antecipou a intuição de que, somente se os homens forem livres para negociar, eles também poderão ser livres para pensar e criar. Em Roma, como Cícero lembrou, os impostos comerciais eram administrados pelos publicanos — contratantes privados —, que muitas vezes abusavam de seu poder para extorquir mais do que era devido. Da mesma forma, hoje os impostos sobre o comércio exterior se tornaram uma ferramenta com a qual governos e grupos de pressão manipulam a economia em seu benefício. Não protegem o “povo”, mas apenas certos produtores próximos ao poder político.
Tarifas continuam não sendo boas e Trump sabe
É claro que os antigos, em sua ignorância econômica, poderiam ser justificados. Entretanto, depois de séculos de teoria econômica e vivência empírica, não há mais desculpas que justifiquem a imposição de tarifas, sob o ponto de vista estritamente econômico: está mais do que provado que as sociedades mais abertas ao comércio são também as mais prósperas, dinâmicas e livres. A globalização, apesar de suas falhas, tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza. As medidas alfandegárias, por outro lado, criam escassez artificial e bloqueiam o acesso a produtos mais baratos e de qualidade.
Ainda em 1776, Adam Smith já havia exposto clara e minuciosamente que tarifas também prejudicam a economia nacional: “Cada indivíduo […] não pretende promover o interesse público, nem sabe o quanto o está a promover; ele é levado por uma mão invisível a perseguir um fim que não era sua intenção” e, ainda, que “não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração deles por seus próprios interesses”. Tarifas e restrições quebram essa cadeia de interdependência espontânea, criam escassez e dificultam o bem-estar coletivo.
E, já no século 20, Ludwig von Mises alertou: “Tudo o que uma tarifa alfandegária pode conseguir é desviar a produção de usos em que a produtividade por unidade de investimento é maior para usos em que ela é menor. A produção não aumenta, diminui”. E acrescentou: “A filosofia do protecionismo é uma filosofia de guerra. […] As medidas protecionistas visam prejudicar os interesses de outros povos; e elas realmente fazem isso”.
A lição do passado foi esquecida?
Pois parece que o mundo está em guerra. Não é só Trump (embora a imprensa só faça críticas a ele), mas a União Europeia também está indo contra a lógica da boa economia quando estabelece desde impostos sobre carros elétricos chineses até novos controles de fronteira “verdes”, como o Mecanismo de Ajustamento de Fronteiras de Carbono, tudo indicando que estamos regredindo ao tempo das alfândegas como ferramentas de planejamento da prosperidade. Entretanto, como a União Europeia é do time dos globalistas, a imprensa classifica eufemisticamente essas tarifas como inocentes “transições ecológicas”, quando na verdade não passam de dirigismo comercial.
Parece que a lição da Antiguidade de que os encargos sobre o comércio servem mais aos senhores do poder do que aos cidadãos está esquecida. O livre-comércio não é um luxo a ser desfrutado em tempos bons, mas uma base para a prosperidade. Como Bastiat também destacou: “A troca, ou comércio, é economia política; é a sociedade em sua totalidade, pois é impossível imaginar uma sociedade sem troca ou troca sem sociedade”. E sempre é bom lembrar a advertência do economista norte-americano Otto Tod Mallery (1881-1956): “Se os bens não cruzam fronteiras, os exércitos o farão”.
Tentando entender a lógica de Trump
A colunista Rana Foroohar, do Financial Times, assim resumiu o que pensa Trump sobre as tarifas: “O nível médio das tarifas dos EUA sobre outros países é de 3%; o da Europa é de 5%; o da China é de 10%. Para ele e para muitos americanos, tudo isso parece fundamentalmente injusto”. E é exatamente essa a percepção de grande parte dos americanos, especialmente dos trabalhadores não qualificados lidando com dificuldades de emprego. E não estão certos?
Tudo indica que Trump pretende usar as tarifas essencialmente em uma função tática, para induzir europeus e chineses a reduzir suas taxas, que ele entende que fechar as fronteiras prejudica a todos, mas de forma assimétrica, e que, portanto, as tarifas podem representar não um fim estratégico em si, e sim um poderoso instrumento de persuasão. E parece que ele está jogando uma carta politicamente eficaz, porque passa aos eleitores o recado de como o contribuinte americano tem sido explorado de várias maneiras: para proteger militarmente sociedades que estão longe de serem pobres e também para apoiar uma nova divisão internacional do trabalho. Na linguagem direta que a comunicação política exige, as tarifas dão vida à retórica de que é preciso trazer muitos empregos de volta para casa.
Além do objetivo político interno, há um externo ainda mais importante: a China. A América de Trump lembra bem como, na década de 1970, antes de iniciar a fase de declínio, temia-se equivocadamente que o Japão estivesse prestes a suplantar os Estados Unidos na hierarquia das potências globais. Mas hoje é a vez da China, e nesse caso o desafio é muito mais concreto. Como escreveu nesta semana o professor de filosofia política Carlo Lottieri, na página do Instituto Bruno Leoni: “A economia não importa mais aqui. E em vez de David Ricardo deveríamos olhar para Carl von Clausewitz”. A propósito, Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz foi um general prussiano considerado um grande estrategista militar e teórico da guerra.
O que podemos esperar do futuro?
O tarifaço de Trump, portanto, não tem o objetivo maior de arrecadar e muito menos representa um retorno ao mercantilismo. Seus assessores econômicos conhecem de cor e salteado as vantagens do livre-comércio. O secretário do Tesouro, Scott Bessent, um investidor e gestor de fundos velho de guerra, afirmou claramente que o objetivo é dar um soco na mesa para mostrar quem é mais forte e induzir os outros países a reduzirem as tarifas impostas aos americanos. E é bom lembrar que o “Orange Man” é um craque na arte de negociar.
É claro que somente o senhor da razão — o tempo — vai mostrar se isso vai dar certo ou não, mas, decorridos pouquíssimos dias do Liberation Day, a União Europeia, o Reino Unido, o Japão, a Índia e outras 70 nações já se mostram dispostos a negociar. Até Ursula von der Leyen, a globalista costumeiramente arrogante, já disse que Bruxelas está pronta para zerar tarifas industriais sobre produtos americanos. Será que com a China será só uma questão de tempo?
*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.