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Senado e cúpula judiciária: ligações perigosas?

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Nossa Constituição, dita “cidadã”, inicia a verborragia de seus infindáveis dispositivos descrevendo o estado democrático por ela regido, com amparo nos princípios fundamentais de que todo o poder emanaria do povo, sendo em nome deste exercido, e de que os poderes da República seriam harmônicos e independentes entre si. Passados mais de trinta anos da promulgação da Carta, tais dizeres soam aos nossos ouvidos esmorecidos como legendas de contos de fadas. Por aqui, a realidade, bem distante de um mundo feérico, descortina a fragilidade da voz do cidadão, mero coadjuvante que, a cada dois anos, costuma trocar um voto por falas melífluas, por um “bolsa esmola” ou até dentaduras, enquanto a prerrogativa de mando é exercida por castas estatais privilegiadas, em seu exclusivo interesse pessoal. Já os poderes, mais percebidos pela população em geral como a Casa da Mãe Joana do que como instituições, parecem um emaranhado de laços rotos, e imiscuídos uns nas esferas dos outros a ponto de formarem um só novelo de podridão.

Durante a semana de abertura dos trabalhos legislativos e judiciários, nossa atenção permaneceu focada na escolha dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. Novos? Que nada; são os mesmos do último biênio, que, na legislatura passada, haviam chegado à liderança de suas casas graças ao apoio maciço do governante anterior, e que, agora, são mantidos em seu reinado pelo suporte aguerrido do mandatário atual, suposto adversário ideológico de seu predecessor. Se a política é a arte do diálogo possível, inclusive entre atores de posicionamentos distintos, entre nós, a maioria esmagadora dos protagonistas usa a mesma máscara pasteurizada, levemente ajustável ao discurso da situação.

No ano recém-iniciado, porém, diante dos abusos tão escrachados praticados pelas cortes superiores, sempre debatidos neste espaço, abriu-se a possibilidade de que a alternância no comando do Senado, casa legislativa investida da atribuição de julgar togados superiores, pudesse colocar um freio aos arbítrios dos magistrados. Aliás, essa expectativa, vista como esperança pela sociedade civil, foi nutrida, com apreensão, pela própria cúpula judiciária, que, segundo noticiado, se manteve, ao lado do Executivo, “de prontidão para eventual crescimento de Rogério Marinho[1].” E, por “prontidão”, entenda-se não a mera fixação de olhos nas telas do noticiário, mas uma conduta ativa de militância, pois, de acordo com veículos diversos, o Sr. Alexandre de Moraes teria ligado para senadores em busca de votos em Rodrigo Pacheco[2].

A gravíssima informação acima, longe de ser uma suposição de alguém como eu, que sequer tem acesso aos gabinetes e ao seu círculo mais próximo, foi disseminada por muitos dias na mídia e nas redes, sem que o nosso censor-mor de fake news tenha determinado a suspensão dos respectivos canais e perfis. Como decorrência lógica, a inércia do togado em exercer sua atividade favorita de reprimir a fala alheia induz à presunção de que ele mesmo, reconhecendo a veracidade dos fatos, os normalize, e até se orgulhe de sua atitude.

Contudo, em paralelo à ética alexandrina, a eventual atuação como cabo eleitoral configuraria crime de responsabilidade, na modalidade de “exercer atividade político-partidária[3]”. Ora, diante das várias matérias midiáticas não silenciadas pela caneta, a corrida eleitoral no Senado deveria ter sido suspensa e ter dado ensejo a uma investigação capitaneada pela PGR, inclusive com a decretação de quebra de sigilos telefônicos, medida extrema que, neste caso, seria mais que justificada, tendo em vista a relevância dos indícios e dos cargos ocupados pelas pessoas envolvidas. Afinal, não é dado a um ministro do STF conversar, fora da agenda, com agentes políticos que, em virtude da chamada prerrogativa de foro (foro privilegiado), só podem ser julgados por aquele togado e seus dez pares!

De toda forma, ainda que as instâncias investigativas tivessem atuado – o que não ocorreu -, ainda assim teria restado a tormentosa questão acerca de quem teria julgado um juiz da suprema corte. Seus colegas igualmente supremos, junto aos quais certamente prevaleceria o corporativismo? O CNJ, órgão que, apesar de concebido como mecanismo de controle externo do Judiciário, tem se mostrado tão corporativo quanto a imensa maioria dos tribunais? Eis aí mais uma ferida cruenta da nossa já frágil democracia, e que, pelo visto, ainda permanecerá aberta por um longo tempo.

Assim, a escolha da presidência do Senado, que teria dado margem a um moraesgate em terras mais civilizadas, foi incorporada à narrativa oficial como um feito democrático. Quanto às irregularidades, “acabaram em pizza”, como se diz.

No dia seguinte ao imbróglio, mais um integrante da câmara alta ganhou manchetes em jornais, e não pela apresentação de meritórios projetos legislativos, ou pela instauração de CPIs para a apuração de malfeitos, inclusive dos que não chegam ao nosso conhecimento. Falo do senador Marcos do Val, que foi a público relatar uma suposta coação, ainda durante a gestão bolsonarista, para levar a cabo um golpe de Estado articulado pelo ex-deputado Daniel Silveira e pelo próprio ex-presidente, em um exército de Brancaleone restrito a três pessoas ligadas ao dito bolsonarismo-raiz. No momento em que escrevo, Do Val acaba de negar o trecho de sua própria manifestação relativa à coação, talvez por ter sido advertido por assessores de que a alegação de coação não subsiste sem provas robustas[4]. Fato que, até poucas horas atrás, parecia ser estranho a um senador da nossa República.

Nas palavras do parlamentar, o plano, traçado por Silveira com anuência de Bolsonaro, residiria na instalação de escutas ilegais para a gravação de conversas nas quais Do Val conduziria Alexandre de Moraes a revelar eventuais fraudes nas eleições de 22, o que acarretaria a prisão do togado e o impedimento da posse de Lula. Elucubrações que podem ter sido efetivamente tecidas pelas figuras em questão, mas que não passaram de projetos, ou até delírios do trio. Aliás, ainda que tivesse sido colocado em prática o tal plano de interceptação telefônica, e se Moraes tivesse reconhecido abusos e/ou crimes de sua autoria, a divulgação da eventual conversa não teria configurado qualquer tipo de “golpismo”. Poderia, na hipótese mais gravosa, ter caracterizado apenas a produção de uma prova nula, embora o próprio STJ já tenha considerado lícita a realização de uma gravação telefônica sem autorização judicial, desde que contasse com a ciência de um dos interlocutores (nesse caso, Do Val)[5].

Outrossim, inviável seria estabelecer qualquer conexão direta entre os supostos planos do núcleo Silveira-Bolsonaro-Do Val e a recente barbárie na Praça dos Três Poderes. Ou alguém imagina mesmo que os vândalos do 8 de janeiro, orientados por bolsonaristas, tenham atuado para a remoção e/ou aniquilação dos inquilinos dos prédios oficiais em pleno domingo, dia em que nossos senhores não comparecem aos seus locais de trabalho? É intuitivo que movimentos disruptivos implicam o uso de armamentos e de estratégias bélicas ou de guerrilha, com a ocupação de instalações públicas por mais que algumas horas, captura de figuras-chave da política e até execuções destas. Tudo muito diferente das imagens daquela tarde dominical, em que vândalos desestruturados, sem lideranças ou coordenação, demonstraram o dolo de danificar o patrimônio público, bastante reprovável na esfera criminal, mas irrelevante em termos de estruturas de poder.

Estamos a esmo, discutindo um pretenso golpe de Estado jamais iniciado, enquanto seguimos governados por um ex-condenado não-absolvido, conduzido da carceragem ao Planalto por um golpe de canetas, e visto, por metade da sociedade e pelas vozes hegemônicas da mídia, como redentor da democracia. Na direção geral, um togado que decide quais são as práticas delituosas no país, quem deve ser considerado democrático e ter direito à palavra, e que está pronto a encaminhar ao Congresso sua minuta de regulamentação das redes sociais[6]. Quais as expectativas para uma nação que leva a sério fantasias retóricas e finge desconhecer a identidade dos efetivos tiranetes já no comando? Coisas futuras. Coisas sombrias.

[1] https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/planalto-e-stf-de-prontidao-para-eventual-crescimento-de-rogerio-marinho

[2] https://ultimosegundo.ig.com.br/colunas/daniel-cesar/2023-01-28/moraes-faz-campanha-pacheco-vencer-senado.html

[3] Artigo 39, item 3 da Lei 1079/50

[4] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/marcos-do-val-muda-versao-e-diz-nao-ter-sido-coagido-por-bolsonaro-no-suposto-plano-de-golpe/

[5] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2017/2017-10-08_08-00_A-interceptacao-telefonica-como-meio-de-prova.aspx

[6] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2023/02/03/moraes-diz-que-tse-levara-ao-congresso-proposta-de-regulamentacao-das-redes-sociais.htm

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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