fbpx

O pensamento de José Guilherme Merquior

Print Friendly, PDF & Email

Há 31 anos, o Brasil perdia um de seus maiores intelectuais: o diplomata e crítico literário José Guilherme Merquior, expoente do liberalismo social não apenas como mera doutrina, mas sim como parte de um verdadeiro estilo de vida a ser vivido.

Em uma verdadeira mística surreal, o pensamento deste gênio hoje tem sido inescrupulosamente usado por indecisos desconhecedores do liberalismo para distorções com as quais o próprio jamais concordaria em suas concepções sobre a natureza de seu social-liberalismo.

Diferentemente do que se proclama em malabarismos argumentativos contemporâneos (dos quais Merquior era ferrenho crítico, como sintetiza na obra Michel Foucault ou O Niilismo de Cátedra), há diálogo entre o seu social-liberalismo e correntes do liberalismo clássico. Até mesmo o ilustre Roberto Campos fora um de seus mentores tanto em matéria de diplomacia como em matéria de liberalismo, com Merquior reservando apenas algumas críticas sobre o que ele considerava limitações do neoliberalismo (empregando o termo exclusivamente em referência à inspiração política de Margaret Thatcher e Ronald Reagan).

A concepção de liberalismo social de Merquior foi sumarizada por ele em uma aula de formação política no Partido Liberal (PL) dos anos 1980:

“O moderno liberalismo social, doutrina do PL, não deve querer dizer apenas menos Estado; quer dizer sobretudo mais liberdade. E o Estado contido pode ser um poderoso instrumento para promover liberdade para todos. Keynes, que tanto transformou o liberalismo econômico, recusou-se a aceitar tanto a opção leninista (sacrificar a democracia para acabar com o capitalismo) quanto a fascista (sacrificar a democracia para salvar o capitalismo). Mas alguns liberais são frios em matéria de fervor democrático. Hayek, por exemplo, chegou a imaginar alternativas que atuassem na base de princípios liberais. Para o neoliberalismo de direita, a liberdade econômica, além de necessária, é suficiente. Nosso melhor liberalismo não deve ter um permanente pavor do Estado; deve sim — e com crescente vigor — buscar a limitação da ação do Estado a seus objetivos reais. Este é o liberalismo social que o PL defende. Liberalismo com preocupações sociais é a única doutrina política atual que leva profundamente a sério o ideal democrático no sentido rigoroso da palavra, de governo do povo. Os socialismos de Estado dizem ser democráticos, mas ninguém se atreveria a dizer que praticaram a democracia como forma de governo. A democracia liberal social é realmente democracia, variando apenas no grau do seu teor democrático. O argumento liberal não precisa fugir à realidade; mas o antiliberalismo socialista só consegue basear-se no idealismo e em promessas sempre refeitas e adiadas de um paraíso de liberdade.”

Analisando este trecho de sua declaração sobre o que compreende como liberalismo social, é notório que sua preocupação crescente e mais notória é com um crescente entendimento de parte do liberalismo em acreditar que se pode resumir o liberalismo à matéria econômica, concepção que ainda hoje é muito vigente em grande parte dos liberais brasileiros. Ele resumia a postura do neoliberalismo thatcherista da seguinte forma:

“O neoliberalismo só confia no jogo do mercado. Mas nós sabemos que o mercado, conquanto seja instrumento indubitavelmente necessário para a criação de riqueza e do desenvolvimento econômico intensivo, nem por isso constitui uma condição suficiente da liberdade moderna, porque não é capaz de gerar, por si só, toda uma série de requisitos e oportunidades para o exercício mais pleno e mais significativo da individualidade de muitos. Se suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das liberdades modernas, deixar tudo entregue a seu império é restringir significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a minorias – e a minorias compostas de privilegiados pelo berço, e não só pelo mérito.”

A posição de Merquior contra a análise economicista do liberalismo brasileiro é notória de tal forma que o leva a criar um termo que distingue os liberais, aqueles que adotam a posição do liberalismo debatendo a estrutura política e econômica na visão de prover a liberdade, dos liberistas, aqueles que apenas estariam dispostos a tratar da liberdade econômica, pouco importando se a política seria baseada em pressupostos liberais ou não.

A proposta política de Merquior visava a tirar o Brasil de velhas amarras: patrimonialismo e personalismo, que imperavam no cenário político brasileiro. Merquior defendia uma atuação do Estado na moderação social e econômica, mas com favorecimento aos ambientes de negócios da livre-iniciativa privada. Defendia a privatização das estatais e o investimento massivo do Estado em educação, saúde e segurança pública, os pilares mais necessários de cada estado.

É também relevante notar a pequena menção ao economista britânico John Maynard Keynes, que é utilizado quase sempre como referência em propostas antiliberais de maneira generalizada, principalmente ao se tratar de pessoas que, rejeitando a opção socialista, defendem um capitalismo antiliberal, sendo chamadas de “keynesianos”. Para Merquior, isso não poderia estar mais errado.

Conforme disposto em seu livro Liberalismo Antigo e Moderno, Keynes, em matéria de filosofia política, argumentava indubitavelmente em favor de liberdade política, sendo um sucessor legítimo do liberalismo social de Thomas Hill Green na tradição britânica, resumindo toda sua análise ao caráter moral e político-filosófico, despojando qualquer análise de teor economicista, tão em voga no Brasil de seu tempo e também de hoje.

Outra das tradicionais distorções que se fazem do pensamento do autor, que talvez seja a mais famosa, é a de tratar como opostos inconciliáveis os termos “liberal” e “conservador” no que se refere à política. Em muitos casos é comum deparar-se com pessoas que mencionam que “Merquior fala que não existe liberal conservadorismo”, o que configura uma bobagem sem base, uma vez que em seu mesmo Liberalismo Antigo e Moderno, Merquior fez questão de abrir a história do liberalismo a partir do chamado “conservadorismo liberal”, que, segundo o próprio, teria como base o filósofo britânico Edmund Burke, e teria como maiores seguidores e influenciados justamente figuras liberais clássicas, como Lord Acton, Herbert Spencer e a Escola de Madrid, inaugurada pelo grande Ortega y Gasset.

Em conclusão sobre suas concepções políticas, uma breve análise do comunismo deve ser pontuada para registro: de acordo com Merquior, o socialismo, em suas origens intelectuais, não era uma teoria política e sim uma teoria econômica que procurava reestruturar a indústria. O socialismo só se politizou com Karl Marx, o qual fundiu a crítica do liberalismo econômico com a tradição revolucionária do comunismo. Para o intelectual, Marx nunca valorizou os direitos civis e chegou a condená-los, vendo neles mero instrumento de exploração de classe.

O marxismo, em especial os regimes comunistas, sempre refletiu esse menosprezo pelos direitos de expressão, profissão, associação, etc. Apesar da crítica ao marxismo, Merquior fazia questão de distingui-lo da social-democracia. Tinha em mente que “o capitalismo não é um anátema, mas o mercado não é visto como um meio adequado de suprir as necessidades sociais”

Para ele, a posição de Leonard Hobhouse marca a separação do liberalismo social de todas as formas de socialismo quando atrela posições de liberdade individual, com as quais o marxismo nunca teve preocupação, a uma nova ênfase de igualdade de oportunidades unificada aos direitos que conferiam a liberdade, sem dar nenhuma natureza socialista às suas concepções políticas, que se refletiam na posição do partido liberal britânico, que defendia que somente uma sociedade que garantisse a propriedade privada era capaz de prover o bem-estar social.

*Artigo publicado originalmente na página Liberalismo Brazuca no Facebook.

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Instituto Liberal

Instituto Liberal

O Instituto Liberal é uma instituição sem fins lucrativos voltada para a pesquisa, produção e divulgação de idéias, teorias e conceitos que revelam as vantagens de uma sociedade organizada com base em uma ordem liberal.

Pular para o conteúdo