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Dívida “histórica”: uma retórica alegórica

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Suponha que no ano de 1870 o seu bisavô tenha tomado um empréstimo do trisavô de Zeca e que, por algum motivo, tenha falecido sem pagar a dívida. Suponha também que Zeca esteja agora lhe cobrando aquele débito. Considere, ainda, que ele se ache no direito de exigir-lhe indenização, não apenas para ele, mas para todos os indivíduos do grupo a que ele pertence, mesmo aqueles cujos ancestrais nem conheceram seu trisavô. Por fim, imagine que Zeca jogue na sua cara que você tem obrigação de ressarci-lo e aos companheiros porque, “historicamente”, deve a todos. Não seria uma bizarrice, um disparate?

Porém, segundo a retórica fantasmagórica da dívida “histórica”, todos os brancos, descendentes ou não de antigos proprietários de escravos, seriam corresponsáveis pela escravização de negros que existiu por quase 400 anos no Brasil e, portanto – por uma lógica no mínimo esquisita – todos os brancos vivos estariam em débito com todos os descendentes de africanos, inclusive os que não descendem de escravos, a quem devem “indenizar” por meio de políticas ditas “afirmativas”, como as cotas raciais.

O que mais assusta que muitos caem na esparrela desse argumento e o aceitam como verdade incontestável, revelada pelas escrituras, um verdadeiro dogma. Mas é óbvio que se trata de uma falácia descomunal, construída para alcançar objetivos políticos por meio da divisão da sociedade entre credores negros e devedores brancos, tal como fazem para fracioná-la entre mulheres e homens, heterossexuais e homossexuais, ricos e pobres, trabalhadores e patrões, nordestinos e sulistas e até mesmo gordos e magros. Dividir pessoas e incitá-las a odiar-se reciprocamente é essencial para que as ideias coletivistas e socialistas consigam sobreviver.

É fácil desmontar a arapuca, mas antes devemos formular algumas perguntas, deixando as respostas aos leitores, já duvidando de que sejam capazes de formular respostas adequadas. Qual seria o valor dessa dívida? Como foi calculado? Quem deveria, por justiça, ser obrigado a pagá-la? Como se separaria credores de devedores entre os próprios negros – aqueles que não descendem de escravos daqueles cujos antepassados foram donos de escravos e, portanto, estariam sujeitos a pagar? E quanto aos brancos com ancestrais negros e negros com antepassados brancos? Deveriam pagar ou receber? Discriminação no passado deve ser paga com discriminação no presente? Injustiça ontem com injustiça adicional hoje?

Sugerir uma dívida “histórica” por pura ideologia ou interesse, sem conhecer a história verdadeira – a que não está nos livros e cartilhas do MEC, mas é admitida como verdade incontestável pelas “entidades” e partidos de esquerda – não é uma atitude correta, por atentar contra a lógica dos fatos.

Há duas maneiras de analisar os efeitos morais e jurídicos da triste história da escravidão, para desmascarar a falácia da “dívida histórica”.

A primeira é a própria história: sabe-se por muitas fontes (ver, por exemplo,  Historical survey – Slave-owning societies, em Encyclopædia Britannica), que não só africanos, mas muitos outros povos também foram submetidos à completa servidão.   Na verdade, a escravidão nasceu com o próprio aparecimento das civilizações: Suméria, Egito, China, Império Acadiano, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia, Índia, o Império Roman, califados e sultanatos islâmicos, Núbia e civilizações pré-colombianas das Américas.

Como resumiu irrefutavelmente Thomas Sowell:

“Negros não foram escravizados porque eram negros, mas porque estavam disponíveis. A escravidão existiu no mundo há milhares de anos. Brancos escravizaram outros brancos na Europa durante séculos antes do primeiro negro ter sido levado ao ocidente. Asiáticos escravizaram europeus. Asiáticos escravizaram outros asiáticos. Africanos escravizaram outros africanos e, ainda hoje, no norte da África, negros continuam a escravizar negros”.

As pessoas eram tornadas escravas por cinco principais motivos: dívidas não pagas, punição por crimes, caírem prisioneiros em guerras, abandono de crianças e também por nascerem de escravos. Os próprios africanos e seus descendentes, no Brasil, quando conseguiam sua libertação, podiam comprar ou capturar outros negros como escravos e Zumbi, exaltado como herói por muitos, foi um escravo que se transformou em proprietário de escravos, assim como muitos outros. Então, como decidir em que coluna do balanço da “história” seus atuais descendentes estão, na do débito ou na do crédito, na de haveres ou na de obrigações? Os sucessores em linha direta dos filhos de Zumbi gerados quando era ainda escravo ou dos que nasceram depois? E os atuais descendentes remotos de todos os povos citados acima? São credores? E, se sim, de quem? Um judeu é credor de todos os egípcios dos nossos dias, mesmo daqueles cujos antepassados não possuíram escravos? E um judeu dos nossos dias com ancestrais egípcios? Dá para perceber o surrealismo, a incongruência e a fragilidade da retórica da dívida “histórica”?

A esquerda e os movimentos ativistas negros acreditam que os efeitos de atos, escolhas e responsabilidades feitos no passado devem ser trazidos ao presente e estendidos a grupos de indivíduos com características comuns ou semelhantes. Sendo assim, o fato de brancos terem escravizado negros no Brasil teria criado uma dívida moral e “histórica” dos primeiros para com os segundos, a ser paga por quem hoje faz parte dos primeiros. A necessidade de acerto dessa pretensa dívida, então, é o pretexto mais usado para defender certas discriminações – chamadas eufemisticamente de ações afirmativas – entre as quais a reserva de vagas para negros em universidades, concursos públicos e empresas. Tais discriminações, em um povo bastante miscigenado como o brasileiro, tornam-se ainda mais absurdas e inaceitáveis.

O segundo bloco de argumentos contra essa dívida alegórica parte do pressuposto válido de que qualquer direito, obrigação, ato, ação e responsabilidade são atributos individuais, de cada indivíduo, um a um e jamais a grupos de pessoas. Ninguém deve, sob qualquer justificativa, ser chamado para reparar um mal causado por outrem, mesmo tenha a mesma cor da pele, seja da família, amigo, tenha gostos semelhantes ou vote no mesmo candidato.

Isso significa que não existe dívida “histórica” ou “moral” a ser ressarcida ou paga pelos que vivem hoje, seja de brancos para com negros, de brancos para com brancos, de negros para com brancos, de negros para com negros, de egípcios para com hebreus, de descendentes de portugueses e italianos para com mouros ou por quaisquer outros grupos, simplesmente porque esses brancos, egípcios e mouros não são obrigados a pagar por injustiças praticadas por seus ancestrais.  E mesmo que o fossem, não seria para os negros, egípcios portugueses e italianos de hoje, mas para seus antepassados – os que cometeram as injúrias – que, obviamente, já não estão entre nós há muitos e muitos anos.

Os pretensos contabilistas do débito intergeracional costumam contra-argumentar trocando a retórica moral pela material, dizendo que o trabalho escravo negro gerou benefícios para os brancos, que permitiram aos descendentes dos senhores de escravos desfrutarem injustamente de situação financeira superior à dos descendentes dos escravos, o que justificaria a imputação de culpa e a consequente cobrança.  Trata-se de uma visão estreita e manipuladora da história que, se for levada ao pé da letra, exigirá a construção da árvore genealógica de todos os indivíduos, do começo dos tempos até hoje. Mesmo se isso fosse possível, não é muito provável que a maioria dos habitantes do mundo possua ascendentes que foram escravos e que foram senhores de escravos? Ou seja, não é plausível admitir que essa maioria beneficia-se de riqueza herdada “injustamente” e ao mesmo tempo contribuiu “injustamente” para enriquecer outros? Não é como se isso faça parte de nosso “DNA histórico”? E também não é verdade que o único fator de diferença, nesse caso, é a proporção contida em cada indivíduo entre o quanto se beneficiou e o quanto foi forçado a beneficiar outros indivíduos e que isso é simplesmente impossível de determinação?

Isso significa que não existe a menor possibilidade de saber quem é credor e quem é devedor, ou quem é mais agredido e quem é mais agressor, mesmo pela ótica holística e coletivista de atribuição de responsabilidades. Portanto, é preciso – mais do que isso, é forçoso – reconhecer que muitas desumanidades e crueldades aconteceram, mas que nada pode ser feito para compensar as vítimas reais e esse deve ser o ponto de partida para a consolidação de uma sociedade pacífica e desprovida de rancor e sentimento de vingança.

Por fim, é evidente que todos nós cometemos erros na vida, o que significa que, se essa retórica alegórica da dívida “histórica” for levada às últimas consequências, todos os nossos antepassados, a começar por nossos próprios pais e mães até os mais remotos, seriam nossos “devedores”, ou não? Aquele emprego que sua mãe rejeitou e que teria proporcionado grande ganho financeiro para a família, de certa forma não prejudicou os filhos? E quando seu avô deixou de fazer um negócio, que se revelou a posteriori lucrativo, pensando que seria uma escolha errada, isso não prejudicou você? E o seu bisavô materno, se tivesse poupado para deixar um patrimônio sólido ao invés de gastar o dinheiro, não teria tornado a vida dos filhos, netos e bisnetos menos difícil? A verdade é que as oportunidades de melhorar de vida perdidas por seus antepassados, quaisquer que tenham sido os motivos, afetaram negativamente a sua vida. A rigor, todas as oportunidades de enriquecer que todos os seus antepassados deixaram passar em branco influenciaram a sua condição de vida atual.

Para encerrar o assunto, uma pergunta: se na visão surreal da dívida “histórica” os descendentes devem pagar pelos erros dos seus antepassados, você não estaria devendo a você mesmo, já que você, que é humano, certamente cometeu um erro que prejudicou você, seus filhos e netos?


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.

 

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