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“Coronelismo, enxada e voto”: uma reflexão sobre a força do município no Brasil

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O debate sobre a descentralização de poder é muito relevante, mas raramente é feito levando-se em consideração os dilemas e especificidades da formação social brasileira. Nesse sentido, tem muito a contribuir esta obra clássica da ciência política nacional, Coronelismo, enxada e voto – O município e o regime representativo no Brasil, de Victor Nunes Leal (1914-1985).

O autor, bacharelado em Direito em 1936 – formando-se intelectualmente no seio da geração de pensadores sociais dos anos 30, preocupados em dissecar a identidade e os problemas estruturais do país, como Gilberto Freyre (1900-1987) -, foi ministro-chefe da Casa Civil durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) e ministro do Supremo Tribunal entre 1960 e 1969, quando o regime militar, em plena vigência do AI-5, fez sua aposentadoria compulsória.

É plausível que algumas ideias de Nunes Leal, como sua ligeira ênfase na relevância da industrialização sustentada pelo protecionismo econômico para promover o crescimento do país, sofram influência de sua vinculação ao desenvolvimentismo pessedista de seu amigo JK. De todo modo, isso é acessório ao texto e o livro, que já contou com prefácios de José Murilo de Carvalho (1939), Alberto Venâncio Filho (1934) e Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), desfruta merecidamente de prestígio por empreender uma análise histórica, minuciosa e objetiva do problema de que se incumbe.

Seu eixo central é a questão do “coronelismo”, expressão cuja origem remonta, de acordo com o filólogo e professor Basílio de Magalhães (1874-1957), ao tempo em que o Império estabeleceu a Guarda Nacional, força armada civil criada na Regência em subordinação ao Ministro da Justiça e aos presidentes de províncias (antecessores dos atuais governadores de estados, mas que eram indicados pelo poder central em vez de eleitos). A partir dessa época, além daqueles que eram efetivamente “coronéis” da Guarda, o tratamento “começou desde logo a ser dado pelos sertanejos a todo e qualquer chefe político, a todo e qualquer potentado”.

Em derivação dessa ideia, o fenômeno assim chamado no livro é a complexa estrutura de poder dos líderes locais e municipais, particularmente os detentores de terras, em um país ainda profundamente agrário. Seria um elemento fundamental na análise da vida pública brasileira, particularmente durante a República Velha. Essa estrutura de poder é o mote que Nunes Leal emprega para estudar a evolução das atribuições e recursos da esfera municipal no Brasil até o ano de lançamento de seu livro (1948).

Sua principal teoria é de que o coronelismo é “resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada”. Essa história começa ainda ao tempo da colônia, quando, inclusive por conveniência, na linha interpretativa de Gilberto Freyre – Raymundo Faoro em algum grau relativiza isso -, o “poder privado” dos grandes latifundiários da monocultura escravista era hipertrofiado, com quase toda a vida social orbitando sua autoridade.

Nunes Leal, tendo isso em mente, disseca, em diferentes capítulos, temas como o sistema de eletividade (ou não), a quantidade de receita recebida e a organização policial e judiciária – tudo isso no âmbito dos municípios, menor unidade da vida político-administrativa do Estado brasileiro. O autor observa o crescimento da força do “poder público” centralizado, de início com o unitarismo do Império, em desenvolvimento a partir da chegada da Corte de D. João VI (1767-1826), concentrando o poder de nomear os presidentes provinciais e interferir, em consequência, nas localidades.

Nunes Leal trafega pelas tentativas de modificações nesse quadro de ampla centralização, como o Ato Adicional de 1831, e os óbices em que esbarram, analisando as confusões entre o poder de polícia e o poder judiciário na esfera local, e conclui pela ampla predominância da tendência de reforço ao poder central e à União, em atribuições e recolhimento de impostos, em detrimento do município.

Isso poderia parecer um paradoxo para aqueles que consideram o coronelismo um fenômeno definitivo na explicação do Brasil, mas Nunes vai demonstrar que é o contrário. O coronelismo, em sua obra, não é “a simples afirmação anormal do poder privado”. Diferentemente do patriarcalismo do senhor de terras colonial, ele já é, dentro do sistema da “política do café com leite” ou “política dos governadores” de Campos Sales – presidente que, na visão de Nunes, apenas institucionaliza um problema que tem raízes muito mais remotas – na República Velha, um resultado da “decadência do poder privado e funciona como processo de conservação do seu conteúdo residual”. É uma “relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido”.

No sistema colonial, apenas as câmaras municipais tinham um caráter eletivo, mas todas as esferas de poder estavam sujeitas ao governo português, que, insuficiente para exercer a plenitude das funções, consentiu em sujeitar-se ao poder dos senhores na vasta terra americana. Com o Império independente, o sistema representativo passa a ser um projeto desejado pelos nossos estadistas, dentro das linhas aristocráticas comuns à época, convivendo com o voto censitário e a escravidão.

Já ali, porém, Nunes Leal observa a profunda incidência de fraudes e os defeitos crônicos da operação eleitoral, uma constante nos debates e esforços parlamentares da monarquia. Com todas as experiências realizadas para tentar mudar isso, em última instância, continuou sendo a presença do imperador D. Pedro II e de seu Poder Moderador que chancelava e sustentava a rotação dos gabinetes ministeriais e, em consequência, dos presidentes de províncias, impedindo que a manipulação dos instrumentos eleitorais encastelasse apenas um mesmo partido em toda a máquina pública. As influências das lideranças locais sobre os juízes e as polícias (favorecidas pela confusão nada ao estilo Montesquieu de suas competências) faziam com que, a ser de outro modo, a única saída fosse a revolta armada.

Com a abolição e a extensão do sufrágio, o voto dos trabalhadores rurais, não mais escravos, se tornou de enorme interesse dos líderes políticos republicanos. “Cresceu, portanto, a influência política dos donos de terras, devido à dependência dessa parcela direta do eleitorado, consequência direta da nossa estrutura agrária, que mantém os trabalhadores da roça em lamentável situação de incultura e abandono”, diagnostica Nunes Leal. Sobre essa imensa estrutura de subjugação de um povo rural, inconsciente de sua missão política e subjugado pelos chefes locais, constrói-se o Estado brasileiro representativo, agora com o “pseudo-federalismo” da República Oligárquica.

Isso cria o quadro perfeito para o acordo entre os líderes federais e estaduais, de um lado, e os “coronéis” ou líderes locais, de outro. Estes últimos oferecem o “voto de cabresto” de toda a gente que lhes está subordinada; os primeiros, como concentram o poder econômico, com o sufocamento financeiro do município, fazem uso “do dinheiro, dos serviços e dos cargos públicos” para barganhar com os “coronéis”. Isso, a despeito da existência de “coronéis” ligados à oposição, favoreceu no Brasil o predomínio amplo do governismo, junto a instrumentos como a “degola” de candidatos e a manipulação das mesas eleitorais. “O fortalecimento do poder público não tem sido, pois, acompanhado de correspondente enfraquecimento do ‘coronelismo’”, pois, ao contrário, garante “aos condutores da máquina oficial do Estado quinhão mais substancioso na barganha que o configura”.

O livro – lembremos, publicado no fim da década de 40 – aponta a Revolução de 30 e o crescimento da economia industrial, acompanhado da urbanização, como elementos que estavam golpeando o “coronelismo”. Alude também às reformas na legislação eleitoral que a tornavam mais ampla e transparente. O “ponto ótimo” nas relações entre os “coronéis” e o Estado estaria em decadência, bem como, na Constituinte de 46, teria sido dada uma atenção melhor ao municipalismo. Porém, conclui Nunes Leal, “a pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em consequência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres”.

Como os udenistas à época, acreditamos que o sistema eleitoral ainda era muito deficiente, com as cédulas emitidas pelos partidos e sujeito, como o próprio Nunes aliás reconhece na obra, à propaganda reminiscente do regime personalista do Estado Novo. Basta ver que, dois anos depois de seu livro com desfecho preocupado, mas algo otimista, Getúlio Vargas voltou ao comando… A urbanização e o desenvolvimento tecnológico, porém, certamente minoraram bastante, até os dias de hoje, o fenômeno que o autor compreendia então como “coronelismo”.

Minorar não significa destruir seus efeitos, nem de longe. A pobreza e a deficiência no ensino, ainda mais quando desviado de seus fins por interesses ideológicos, ainda sujeitam parcelas da população, não necessariamente na zona rural, mas também nos bolsões de carência nas grandes cidades, à pressão e à sedução clientelista de “caciques políticos” regionais.

Isso só reforça a necessidade de atacar as causas sociais do problema, mas também de dar importância aos municípios e aos espaços menores de expressão das ideias. As melhores bandeiras somente triunfarão se nos preocuparmos, não apenas com o presidente da República, mas também com as associações de bairro, as prefeituras, as câmaras e assembleias.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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