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A verdade sobre o Neoliberalismo e o Consenso de Washington

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Neoliberalismo é um termo que caiu em desgraça em praticamente todos os meios preocupados com política e/ou economia. Liberais, conservadores, sociais democratas, socialistas, comunistas e turma da direita, da esquerda e do centro, todos parecem ter bons motivos para desprezar o que quer que seja apontado como neoliberal. Alguns chegam mesmo a negar a existência do neoliberalismo. Mas o que é o neoliberalismo? Existe um pensamento neoliberal? Da minha parte, creio que faz sentido falar de um pensamento neoliberal e que tal pensamento fez mais bem do que mal na maioria dos países onde inspirou políticas públicas, inclusive no Brasil.

Para começar, registro que o neoliberalismo não é a coleção de espantalhos criado pelos inimigos de qualquer forma de liberalismo, e também não é uma forma de socialismo, como afiram alguns liberais e conservadores. A história do neoliberalismo começa na década de 1930, ainda durante a Grande Depressão. Naquela época, era comum culpar o liberalismo, especialmente os mercados livres, pela desgraça econômica que se espalhou pelo ocidente. De um lado uma turma inspirada na experiência da União Soviética, que ainda não tinha sido revelada ao mundo como um regime totalitário, propunha o planejamento central da economia como forma de substituir o livre mercado. Do outro lado, Keynes liderava os que queriam encontrar uma forma de regular e controlar os mercados para que não acontecessem novas crises como a que estava ocorrendo.

Não existiam apenas duas turmas, é claro. Entre outros grupos de pensadores, havia os que continuavam acreditando no livre mercado como a maneira mais eficiente de organizar a produção e a distribuição em uma sociedade. Os defensores do livre mercado – com alguma imprecisão, vou chama-los de liberais – acreditavam que o planejamento central era impossível, no que se mostraram certos, e que as intervenções para regular ou corrigir o mercado levariam (quase que) fatalmente a um governo totalitário. Foi nesse ambiente que apareceu a ideia de um liberalismo, digamos, bonzinho. Uma ordem liberal que teria por base o livre mercado, mas onde o governo construiria uma rede de proteção social que impedisse que famílias mal-afortunadas caíssem na miséria. Nessa discussão, apareceu também a ideia de o governo regular o mercado.

Se o leitor pensou que essa tentativa de usar o estado para consertar o mercado ia acabar em confusão, o leitor acertou. O Colóquio Walter Lippmann, que aconteceu em 1937 na França com o objetivo de arrumar o liberalismo, não chegou a um acordo. Existissem redes sociais na época, talvez tivéssemos posts de Mises e Hayek chamando os outros participantes de socialistas. Porém, foi criado o Centro Internacional de Estudos para Renovação do Liberalismo (Centre International d’Études pour la Rénovation du Libéralisme, CIERL) que, depois da guerra, serviu de inspiração para a Sociedade Mont Pèlerin. Esta sociedade foi criada em um encontro de liberais organizado por Hayek em 1947 em Mont Pèlerin na Suíça. Entre os fundadores da Sociedade Mont Pèlerin, estão nomes como Milton Friedman, Karl Popper, Ludwing von Mises e Frank Knight. Foi nessa reunião e para essa turma que Mises falou a famosa frase “you all a bunch of socialists” por conta de uma discussão a respeito de impostos progressivos.

Esse liberalismo revisado que nasceu no Colóquio de Walter Lippmann e ganhou força com a Sociedade Mont Pèlerin, que aceita algum tipo de proteção social e que, com bem mais resistência, aceita alguma regulação do estado no funcionamento do mercado, é o neoliberalismo original. Não sei se é justo chamar de avô do atual e detestado neoliberalismo, mas dificilmente alguém pode negar que esta seja a origem do termo e das ideias que formam a base do pensamento neoliberal. Sim, meu caro leitor, se algum dia te acusaram de neoliberal, saiba que, na sociedade que deu origem às ideias que você defende, estão tipos como Hayek, Milton Friedman, George Stigler, James Buchanan, Maurice Allais, Ronald Coase, Gary Becker, Vernon Smith e Mario Vargas Llosa, para citar apenas os que foram laureados com o Nobel. Entre os objetivos da Sociedade Mont Pèlerin estavam:

1. Analisar e explorar a natureza da crise corrente de forma a tornar claro que a crise se origina de problemas econômicos e morais.

2. A redefinição das funções do estado de forma a distinguir de forma mais clara as diferenças entre a ordem liberal e a ordem totalitária.

3. Procurar métodos de restabelecer o império da lei e garantir seu desenvolvimento de que indivíduos nem grupos de indivíduos possam invadir a liberdade dos outros e de forma a garantir que direitos privados não se tornem a base de um poder predador.

4. Avaliar a possibilidade de garantir padrões mínimos por meios que não sejam inimigos do funcionamento e das iniciativas do mercado.

5. Buscar métodos de combater o mal uso da história feito para fortalecer crenças hostis `s liberdade.

6. Estudar o problema da criação de uma ordem internacional que garanta a paz e a liberdade e permita o estabelecimento de relações internacionais harmoniosas.

As décadas de 40 e 50 não eram exatamente o melhor momento para convencer as pessoas a respeito do liberalismo ou de sua versão reformulada. A guerra deixou marcas; era difícil não ver nos estados a força que venceu o nazismo e que organizaria a resistência ao comunismo. Como convencer as pessoas de que esse mesmo estado guardava a semente do totalitarismo? No campo econômico, veio um período de crescimento e prosperidade; como se contrapor as políticas de inspiração keynesiana que prevaleciam na época? Uma sociedade de mercado com um estado forte com condições de criar uma rede de segurança social, de intervir na economia para regular mercados e reduzir, alguns sonharam em acabar, o ciclo econômico e com força para garantir a proteção do mundo livre contra a ameaça vermelha parecia ser o combo perfeito.

Na década de 1970, a coisa começou a desandar. A gota d´água foi o fim da energia barata imposto pelo cartel dos países exportadores de petróleo. O mundo desenvolvido passou a conviver com recessão e inflação, a temida estagflação tinha chegado. Para que o leitor tenha ideia do grau de desespero da época, em 1971, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, rompeu com o acordo de Bretton Woods, grosso modo acabou com o padrão ouro, e decretou um congelamento de preço por trinta dias. Não se trata de um presidente democrata tentando controlar preços. Nixon era do partido Republicano e, entre outras coisas, ficou famoso por deflagrar a Guerra às Drogas e sofrer um processo de impeachment. Um governo congelando preços? Uma crise que misturava inflação com recessão? Como ficavam as liberdades? Por que as políticas econômicas não resolviam o problema?

Estava aberto o caminho para a volta do liberalismo, ou melhor, estava aberto o caminho para as ideias da Sociedade Mont Pèlerin, melhor ainda, estava aberto o caminho para a chegada do neoliberalismo. Na academia, Robert Lucas, Thomas Sargent e Edward Prescott preparavam os modelos que iriam substituir os modelos keynesianos de macroeconomia e servir de base para os modernos modelos de equilíbrio geral dinâmico e estocástico, os famosos DSGE. Na política, o destaque foi na Inglaterra. O país estava devastado pela crise e com sério problema de inflação para os padrões britânicos quando Margareth Thatcher chegou ao poder com propostas de privatização, desregulamentação e disposição para enfrentar sindicatos e outras corporações. Nos Estados Unidos, já na década de 1980, o presidente Ronald Reagan, do partido Republicano, levantou a bandeira do mercado livre e da redução de impostos. É bem verdade que Reagan turbinou gastos militares, mas isso é assunto para outro post. O que importa aqui é que as ideias liberais estavam mais uma vez com força na praça.

Não demorou para a discussão chegar na América Latina. O continente que parecia que decolaria no pós-guerra caiu em desgraça na década de 1980. Por aqui, a recessão tomou ares de década perdida e a inflação virou hiperinflação. Quase todos os estados do continente estavam falidos – a exceção era o Chile, cujo ditador – infelizmente ditadores já era, moda por estas bandas -, no lugar de um desenvolvimentismo como o desposado por nossos ditadores, implementou políticas de inspiração liberal. Como forma de oferecer uma alternativa para países em desenvolvimento, especialmente os da América Latina, o economista John Williamson reuniu vários economistas em Washington para criar uma agenda de consenso que levasse à estabilização e ao crescimento. Como tratava-se de um consenso e aconteceu em Washington, as recomendações ganharam o nome de Consenso de Washington, um erro fatal. Salvo engano, foi Gustavo Franco quem disse que, se o encontro tivesse sido em Havana, teríamos um Consenso de Havana cuja implementação seria bandeira das esquerdas do continente, mas não foi o caso.

O Consenso de Washington passou a ser a cara do neoliberalismo na América Latina. Isso explica porque liberais, mesmo os neoliberais inspirados na Sociedade Mont Pèlerin, passaram a rejeitar e não reconhecer o rótulo de neoliberal. Os princípios abstratos discutidos por pensadores geniais deram nome a um conjunto de dez medidas para recuperar a economia dos países da América Latina destruídas após anos de desenvolvimentismo, nacionalismo e populismo. Deixemos de coisas e cuidemos da vida, dizia o poeta, no lugar de falar das medidas em abstrato vamos apresentar e comentar cada uma delas:

  1. Disciplina fiscal, o governo deve evitar déficits grandes em relação ao PIB.

Reparem que não se trata de proibir déficits ou coisa do tipo, a recomendação é quase que mandar tomar canja de tão básica. Nem mesmo é dito que o déficit deve ser evitado com cortes de gastos, apenas que déficits grandes devem ser evitados. Discordar disso é dizer que o governo não deve nem mesmo tentar evitar déficits grandes. Creio que nem mesmo o pessoal do “gasto corrente é vida” discordaria dessa recomendação, pelo menos não em público.

  1. Redirecionar o gasto de subsídios em benefícios de gastos pró-crescimento e pró-pobres tais como educação, saúde e infraestrutura.

Você não leu errado: os “neoliberais malvados do Consenso de Washington” queriam cortar gastos com subsídios para os muito ricos – no Brasil o exemplo é o BNDES – e direcionar o dinheiro para programas que beneficiam os pobres e para infraestrutura. Em tempo, um dos programas inspirados pelo Consenso de Washington é o Bolsa Família.

  1. Reforma fiscal, como aumento da base tributária e redução das alíquotas marginais.

Ampliar a base tributária significa cobrar impostos de mais pessoas. Quem costuma ficar de fora dos impostos? Redução das alíquotas marginais não significa redução das alíquotas; trata-se de menos classes de alíquotas com diferenças menores entre elas.

  1. Taxas de juros reais positivas e determinadas pelo mercado, porém moderadas.

A ideia era que o governo parasse de subsidiar juros e deixasse a taxa de juros real convergir para a de equilíbrio. Algum comunista infiltrado deve ter colocado o “moderadas”. Depois não sabem o por quê de liberais reclamarem do neoliberalismo do Consenso de Washington.

  1. Taxas de câmbio competitivas.

Céus! Até a turma do câmbio foi contemplada no Consenso de Washington!

  1. Liberação comercial. Liberar importações com ênfase na eliminação de restrições quantitativas (limites físicos de quantidade importada de um determinado bem e/ou de um determinado país). Qualquer proteção comercial deve ser feita por alíquotas baixas e relativamente uniformes.

Basicamente, trata-se de desmontar o modelo de substituições de importações e expor as empresas locais a competição internacional. Repare que não se fala em eliminar tarifas. A recomendação se limita a pedir alíquotas baixas e com alguma uniformidade. Liberais mais radicais certamente consideram esse tipo de alíquota uma afronta ao livre mercado. Não é que eu discorde de que sejam, mas uma proteção desse tipo é um avanço significativo em relação ao que tínhamos na época e ao que temos hoje.

  1. Liberação de investimento estrangeiro direto.

De tão direta, essa recomendação dispensa comentários, mas, para não parecer que isso é coisa de liberal radical, lembro aos leitores que ninguém menos que Maduro, o tirano de Caracas, andou pedindo investimento na Venezuela…

  1. Privatização de empresas.

Ódio eterno aos malditos entreguistas! Mais um ponto que gerou revolta; bobagem, mesmo o governo do PT privatizou um bocado embora tenha inventado outro nome para diferenciar privatizações de privatizações. Antes disso, privatização compreendia venda e concessão. Se não acredita no que digo, faça uma busca por “privatização da Dutra” e veja com os jornais chamavam concessões antes da chegada do PT ao Planalto.

  1. Desregulamentação. Fim de regulamentações que impeçam a entrada no mercado ou restrinjam a competição. Exceção para as regulações que visem a segurança, proteção ambiental, proteção dos consumidores e controlar instituições financeiras.

Mais uma medida que parece radical, mas, por conta das exceções, acaba bem mais ampla. Reparem que mesmo os ambientalistas encontraram um lugarzinho no Consenso de Washington.

  1. Garantia de propriedade intelectual.

Esse é o tipo de assunto que causa brigas sem fim entre liberais, mas que costuma ser aceito em outros círculos.

Como o leitor pode ver, as recomendações do Consenso de Washington estão longe de formar um corpo de medidas liberais radicais e menos ainda de um ultraliberalismo. A encarnação do neoliberalismo no final do século XX parece mais preocupada em agradar a sociais democratas do que em seguir as recomendações da turma da Sociedade Mont Pèlerin, porém, me parece injusto negar que, dado o estado das economias da América Latina, e mesmo de países desenvolvidos, as medidas vão na direção certa.

Vários países implementaram políticas inspiradas no Consenso de Washington. Privatizações, políticas monetárias buscando a estabilidade, abertura da economia, políticas focadas nos mais pobres, abertura para investimento externo e mesmo alguma abertura comercial aconteceram em maior ou menor grau no Brasil, na Argentina, no México e em boa parte do continente. O caso do Brasil é representativo; mais do que Collor, que iniciou as reformas, FHC ficou marcado como o presidente das reformas neoliberais. A era das reformas continuou no primeiro mandato de Lula, começou a ser deixada de lado no segundo mandato de Lula e foi definitivamente abandonada no governo Dilma com o advento da Nova Matriz Econômica.

Se pegarmos os dez pontos acima, temos que: (1) não houve cuidado com o lado fiscal até o final da década de 1990, Lula faz o ajuste fiscal e mantém as contas equilibradas até o final de seu segundo mandato; (2) houve um esforço de redução de subsídios e aumento do gasto social, não houve um investimento significativo em infraestrutura, Lula manteve a troca de subsídios por gasto social no primeiro mandato e depois começou a aumentar subsídios sem redução do gasto social, um modelo que pesou demais nas contas públicas; (3) a reforma fiscal foi discutida e prometida nos governos Collor, FHC e Lula, mas nunca foi feita; (4) as taxas de juros reais passaram a ser ditadas pelo mercado, mas não foram moderadas; pelo contrário, quando as reformas já tinham sido abandonadas no governo Dilma, houve uma tentativa de reduzir taxa de juros ignorando o mercado, que acabou por se mostrar desastrosa; (5) em todo o período das reformas, não houve preocupação com taxas de câmbios competitivas (seja lá o que for isso); pelo contrário, houve um processo generalizado de valorização cambial que, segundo alguns economistas, tirou competitividade da indústria de transformação; (6) a liberação comercial ocorreu de forma muito tímida, o Brasil continua sendo um dos países mais fechados do mundo, talvez o mais fechado; (7) houve liberação do investimento estrangeiro direto, até mesmo a esquerda parou de reclamar das remessas de lucro; (8) aconteceram várias privatizações, mas o governo manteve muita coisa, Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa e BNDES são exemplos de empresas em setores fundamentais que ficaram com o governo; (9) houve alguns esforços de desregulamentação, mas não foram bem sucedidos, continuamos um país complicado e burocrático; e (10) o Brasil passou a reconhecer propriedade intelectual, mas ainda há reclamações de outros países.

Se as políticas do Consenso de Washington funcionaram, é assunto para outro post. certamente não veio o crescimento esperado, por outro lado a situação de caos da década de 1980 foi superada na maioria dos países. No Brasil, o período da reforma foi marcado por inflação baixa para nossos padrões históricos, redução da pobreza e redução da desigualdade. Se o crescimento não foi o que era imaginado, pelo menos tivemos crescimento, coisa que não tivemos na década de 1980 – nem preciso falar do crescimento negativo legado pela Nova Matriz Econômica que veio substituir a era das reformas. Porém, do ponto de vista político, o Consenso de Washington foi um desastre. O estrago foi tão grande que o termo neoliberal quase virou palavrão. John Williamson ainda tentou um segundo consenso de Washington mais focado na parte institucional e admitindo política fiscal anticíclica, mas já era tarde. A esquerda encontrou na demonização do Consenso de Washington e do Neoliberalismo o caminho para o poder em vários países de nuestra América. Contra o neoliberalismo yankee, o socialismo moreno; contra Washington, desenterraram Bolívar. Foi assim que o neoliberalismo virou inimigo público número um; negado pelos liberais por “trair” as ideias liberais e mesmo o neoliberalismo de Hayek, abandonado pelos sociais democratas que não queriam passar recibo de entreguistas ou de ser contra os trabalhadores, demonizado pelos setores mais radicais da esquerda que viram aí o caminho para o poder e carimbado por setores do pensamento conservador como parte da agenda globalista. Tal como na música de Chico Buarque, o neoliberalismo se viu cercado por humilhados, mortos-vivos e flagelados, todos com um bom motivo para esfolá-lo.

Tanto ódio é justo? Creio que não, mas, como espero ter deixado claro, todos têm suas razões para odiar o neoliberalismo de nossos tempos. Da minha parte, sigo falando de neoliberais malvados, enquanto torço para que os dez pontos do Consenso de Washington se tornem realidade; mas se alguém me questionar, eu nego – eu que não vou passar recibo de neoliberal.

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Roberto Ellery

Roberto Ellery

Roberto Ellery, professor de Economia da Universidade de Brasília (UnB), participa de debate sobre as formas de alterar o atual quadro de baixa taxa de investimento agregado no país e os efeitos em longo prazo das políticas de investimento.

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