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A quem a autonomia do Banco Central incomoda?

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Estamos assistindo diariamente a um desfile oficial de declarações estapafúrdias, que revelam um desconhecimento assustador a respeito de assuntos econômicos elementares — e não estou me referindo a teorias mirabolantes ou modelos macroeconômicos incompreensíveis para não iniciados, mas ao simples funcionamento das atividades econômicas no mundo real. Sinceramente, há que se ter muita paciência para acompanhar o noticiário.

Dentre tantas afirmativas descabidas recorrentes e que fazem piscar uma inquietante luz de advertência quanto ao futuro da economia, chama atenção a crítica tosca que o atual presidente fez nos últimos dias à autonomia do Banco Central. Fazendo uso de sua arte de escorraçar plurais, enxotar concordâncias e afugentar todo e qualquer sinal de boa gramática que ouse passar por perto — e, certamente, reverberando a visão bolorenta dos economistas de seu partido —, disse que “essa história de independência do Banco Central é uma bobagem”. Imediatamente depois, como se estivesse apresentando um contra-argumento fulminante, sapecou a pergunta: “Por que o Banco Central é independente e a inflação está do jeito que está?”.

Hein? Como assim? Ora, a inflação de preços está “do jeito que está” — ou seja, entre as mais baixas do mundo — justamente porque o nosso Banco Central teve autonomia para fazer o que vem fazendo desde o fim de 2020, quando percebeu que a tendência dos preços em todo o planeta apontava para uma longa temporada de alta. É preciso salientar que a nossa autoridade monetária foi a primeira, dentre todos os bancos centrais, a ter a percepção correta do problema e a coragem, ainda em tempo de pandemia, para aumentar a taxa básica de juros, e que só foi seguida com grande atraso pelo Fed, um ano depois, e pelo Banco Central Europeu, quase dois anos após. A atuação do nosso Banco Central não apenas segurou a inflação de preços, como a colocou, pela primeira vez na história, abaixo das inflações dos Estados Unidos e dos países da Zona do Euro.

Francamente, qualquer pessoa com conhecimentos básicos de economia, diante de tantos sinais de que a política econômica do PT seria desastrosa, anteciparia rapidamente fortes turbulências nos mercados financeiros e no setor real da economia e concluiria que o processo de deterioração seria inevitável. Se durante a campanha a sinalização era essa, agora que o novo governo vem cumprindo o que prometeu, é óbvio que isso reforça as expectativas pessimistas.

A inflação, que não deve ser entendida simplesmente como um aumento contínuo e generalizado de preços (este é o seu efeito, não a sua causa), mas como uma queda progressiva do poder de compra da moeda em correspondência com a elevação dos preços — nada mais é do que um método pelo qual o governo, o sistema bancário que ele controla e os grupos que ele favorece politicamente adquirem capacidade de expropriar parte da riqueza dos demais grupos da sociedade. Portanto, contrariamente ao que o presidente do país repete frequentemente, é crucial que a sociedade, mediante o estabelecimento de instituições adequadas, impeça que a política monetária fique sujeita às pressões de natureza política. Existem três arranjos institucionais voltados para esse fim.

A evidência empírica mostra que no longo prazo os países com bancos centrais mais autônomos têm taxas de inflação mais baixas e com menores variações

O primeiro e mais tradicional é ancorar a moeda ao estoque de ouro dos bancos centrais, isto é, o regime do padrão ouro. O segundo, sugerido por Hayek, em 1974, consiste na “desnacionalização” da moeda, em que se estimularia a competição entre diversas moedas sobre as quais bancos privados passariam a ter poder de emissão, de modo que as moedas das instituições bancárias administradas mais eficientemente seriam mais procuradas do que as emitidas pelos bancos mal administrados. Assim, seus valores seriam mais elevados do que os das segundas, inclusive a moeda oficial, que continuaria sendo emitida pelo Banco Central, o que faria o sistema tender para a estabilidade. Uma variante moderna dessa proposta é a adoção de um sistema descentralizado de criptomoedas, que competem entre si. Por fim, o terceiro mecanismo para isolar a política monetária das pressões políticas é a “independência do Banco Central”, que equivale, como os anteriores, a separar a política monetária da política fiscal, ou, em linguagem menos técnica, a impedir que o rei Herodes seja o diretor da creche.

A evidência empírica mostra que no longo prazo os países com bancos centrais mais autônomos têm taxas de inflação mais baixas e com menores variações. A Lei Complementar 179, de 25/2/2021, estabeleceu a autonomia do Banco Central, com a adoção de mandatos de quatro anos para o presidente e os diretores, todos em ciclos não coincidentes entre si, bem como com o mandato do presidente do país. A lei atribui ao presidente da República a indicação dos nomes, que devem ser aprovados pelo Senado. O indicado para presidente do Banco Central assume no dia 1º de janeiro do terceiro ano de mandato do presidente da República e os mandatos dos oito diretores são escalonados de dois em dois e de ano em ano, a começar pelo primeiro ano do mandato do presidente da República. Na prática, isso significa que o presidente do país tenha de conviver com dirigentes indicados pelo governo anterior. A mesma lei passou a classificar o Banco Central como autarquia de natureza especial, caracterizada pela “ausência de vinculação a ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica” (anteriormente, era vinculado ao Ministério da Fazenda).

Portanto, o atual presidente do Banco Central continuará no cargo até 31 de dezembro de 2024. Até lá, é razoável supor que as algazarras fiscais do governo não serão financiadas pela expansão da moeda e do crédito, o que significa que a inflação monetária vai continuar a ser controlada por mais dois anos, embora os níveis de preços possam subir, em decorrência das expectativas de descontrole futuro atiçadas pela farra fiscal.

No dia seguinte ao das desastrosas declarações do chefe do Executivo, aconteceu o que qualquer calouro de uma boa faculdade de ciências econômicas (desde que tenha escapado com vida inteligente dos professores doutrinadores no ensino médio) seria capaz de prever: as taxas de juros dos mercados futuros levantaram voo, pelo mesmo motivo que leva as pessoas a tirarem os guarda-chuvas do armário quando têm certeza absoluta de que vai chover. Era óbvio demais. Diante de tamanho retrocesso, o que se pode esperar? A resposta, seguramente, não é das mais agradáveis.

Em primeiro lugar, é bastante plausível supor que, na reunião de meio de ano do Conselho Monetário Nacional, a meta de inflação poderá ser elevada, seja porque a tendência dos gastos públicos é explosiva, o que certamente pressiona politicamente o governo a sancionar o crescimento exagerado nas despesas mediante a expansão monetária, seja porque a nova equipe econômica acredita piamente na maior balela teórica dos últimos tempos, a famigerada Teoria Monetária Moderna (TMM).

Esses economistas parecem viver nos longínquos anos 1950, quando o equivocado estruturalismo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) inspirou Juscelino a gastar e a inflacionar, agarrado à falácia “desenvolvimentista” de que “uma inflação moderada, além de não fazer mal para ninguém, faz bem para o país”. O governo, aliás, já sinalizou que pretende aumentar a meta de inflação. Não é aconselhável levar uma serpente venenosa para casa.

Segundo, será muito importante olhar o perfil do escolhido para substituir o atual diretor de Política Monetária, cujo mandato termina em 28 de fevereiro. Infelizmente, a expectativa é que o indicado seja um petista de carteirinha, ou um economista que não vê problemas quando a oferta de moeda cresce acima do lastro recomendado pelo crescimento da produtividade, da população e do próprio PIB.

Em terceiro lugar, é bem razoável, também, esperar por tentativas de acabar com a autonomia do Banco Central, bastando lembrar que, por ocasião da sua aprovação pelo Congresso, os partidos de esquerda recorreram ao STF, alegando — descabidamente — a inconstitucionalidade dessa medida.

Quarto, cada vez que um governo sinaliza uma suposta preocupação com “os juros altos”, como o atual ministro da Fazenda vem fazendo, pressionando indiretamente o Banco Central para diminuir a taxa de básica de juros (Selic), é óbvio que as taxas longas e futuras sobem imediatamente, como, aliás, já aconteceu. Para piorar o quadro e considerando a tendência gastadora do novo governo, essas pressões serão cada vez mais fortes e, caso sejam atendidas pelo desfazimento da independência do Banco Central, este terá de promover quedas cada vez maiores na taxa de juros básica, o que significa, simplesmente, crescimento acelerado na oferta monetária e, portanto, maior inflação.

Por fim, é necessário levarmos em conta uma questão com consequências práticas muito importantes, derivada da gritante diferença de visão econômica entre o governo atual e o anterior, já que perspectivas diferentes implicam necessariamente políticas econômicas diferentes. Refiro-me à questão da existência ou inexistência de coordenação entre a política (de curto prazo) fiscal e a política monetária, que por sua vez determinam se existe ou não coordenação entre os regimes (de longo prazo) fiscal e monetário.

No governo anterior, existia coordenação entre as duas políticas e os respectivos regimes, uma vez que o objetivo era estabelecer mudanças estruturais nas contas do governo, ou seja, adotar caminhos para estabelecer um regime fiscal austero, com equilíbrio garantido entre receitas e despesas, o que foi sendo feito por meio de medidas que impactavam as contas públicas no curto prazo, mas na presença de outras de fôlego maior, como o programa de privatizações, por exemplo.

Já no governo atual, por seu apego ao Estado, é evidente que austeridade de qualquer espécie é algo que não deve ser levado em consideração e é por isso que a autonomia do Banco Central é um incômodo a ser removido. Dado que a farra fiscal já está delineada e já começou a ser posta em prática, existem então duas possibilidades, conforme a autonomia do Banco Central seja mantida ou não.

No primeiro caso, pelo menos até o fim de 2024, quando expirará o mandato do atual presidente do banco, não vai ter “moleza” monetária: o crescimento dos gastos públicos vai ter de ser necessariamente bancado por maior endividamento, maior arrecadação, ou ambos. O resultado dessa briga de foice entre a cigarra fiscal e a formiga monetária é claro: explosão das taxas de juros e da relação dívida/PIB e desemprego, mas sem que a inflação dispare.

Na segunda possibilidade, em que a autonomia do Banco Central seria cassada — seja legalmente, por uma PEC, seja simplesmente na prática, com trocas de diretores e do presidente —, teríamos uma gandaia monetária para financiar a orgia fiscal. Tal combinação não tem como acabar bem: juros temporariamente para baixo, mas logo depois voltando a subir, relação dívida/PIB brevemente estabilizada, mas com tudo para explodir rapidamente, mais inflação, com possibilidade de hiperinflação e mais desemprego.

Nas duas hipóteses, não há como imaginar a possibilidade de crescimento econômico sustentado. E muito menos de melhoria do “social”. Não tem jeito mesmo, a esquerda não aprende. Em menos de um mês, já fez a águia desistir do voo e voltar a se esconder.

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste

Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
Instagram: @ubiratanjorgeiorio
Twitter: @biraiorio

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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