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Sobre o mainstream econômico, ou uma resposta a Rubem Novaes

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Filipe Rangel Celeti*

Mises-Hayek

O debate de ideias é o que move ambos debatedores a melhorarem as suas argumentações. Sem delongas e enorme introdução, este texto é uma réplica a Rubem de Freitas Novaes com seu “Sobre a Escola Austríaca e Metodologia Econômica”, publicado em maio de 2014 pelo Instituto Liberal. Como os debates em redes sociais não foram esclarecedores, foi preciso escrever o que se segue.

O texto de Novaes elogia o surgimento da revista acadêmica Mises e seu papel de difundir a Escola Austríaca de Economia. Entretanto, logo no final do primeiro parágrafo, o autor afirma que os economistas austríacos criticam a Escola de Chicago, em especial Milton Friedman, apesar das afinidades entre as escolas. É comum as pessoas confundirem algumas coisa. Novaes cai no erro de aproximar as escolas austríaca e chicaguista pelo fato de terem inimigos comuns. Ora, o fato dos austríacos repetidas vezes se mostrarem distantes de Friedman e dos Chicago Boys não é mera disputa infantil, mas a afirmação de que os pressupostos filosóficos e metodológicos são diferentes e levam à compreensões diferentes acerca da ciência econômica[1]. Como Murphy (2011) afirmou:

“Em questões típicas como salário mínimo, tarifas ou gastos governamentais, economistas austríacos e chicaguistas podem seguramente ser agrupados conjuntamente como “livre-mercadistas”.  Entretanto, em várias outras áreas — particularmente em questões de pura teoria econômica — as duas escolas são completamente diferentes”

Na sequência, o autor gasta algumas linhas para falar de história do pensamento econômico com o intuito de mostrar algum conhecimento sobre a revolução marginalista e sua importância para a economia no final do século XIX e início do século XX. Porém, ao chegar à Crise de 29, comete o erro de dizer que é preciso enxergar algo bom em Keynes, como, por exemplo, a ideia de “armadilha de liquidez”. Ao afirmar que Keynes teve bons insights sobre a crise e a economia, se esquece em quais pressupostos se baseiam tais insights. Ao afirmar que em momentos de crises é preciso pensar na questão da “armadilha da liquidez”, afirma-se conjuntamente que Keynes tenha acertado sobre a circulação da moeda, a função da poupança e os efeitos dos juros[2]. Tudo o que decorre do pensamento de Keynes é o fomentar de gastos para salvar uma economia que entrou em crise justamente por causa de tal fomento.

Após afirmar a importância de Keynes, Novaes apresenta a teoria monetarista de Friedman contra a função-consumo keynesiana. Se a tese monetarista de Friedman está correta, não poderia o autor afirmar que Keynes teve bons insights. Os “insights” não estão separados do modo como Keynes pensava a moeda e a política fiscal.

Deste percurso histórico, chega-se a Ludwig von Mises. Ao falar sobre a obra Ação humana de Mises, Novaes (2014) aponta que

“Foi na negação do uso da Matemática e da Estatística que mais se evidenciou a influência maléfica de Mises sobre o desenvolvimento da Escola Austríaca. Ao afirmar que a Ciência Econômica deveria ser totalmente dedutiva, apriorista, e que seria improcedente e inadequada qualquer agregação de variáveis econômicas, o mestre austríaco simplesmente isolou seus seguidores, afastando-os de um progresso espantoso que se espalhou na profissão por inúmeros campos”

A adjetivacão “maléfica” pode ter alguns sentidos. Em primeiro lugar, a economia dedutiva proposta por Mises pode ser má em si mesma por estar errada. Em segundo lugar, o pensamento miseano pode ser mau por ser incompleto. Em terceiro lugar, a influência de Mises é má porque não é aceita pelo mainstream. O fato dos austríacos estarem isolados pode se dar por estarem errados ou simplesmente por conta da ignorância e arrogância dos economistas que não querem admitir não estarem fazendo economia de verdade e terem de abandonar suas pretensões. A leitura de Ação humana deveria nos despertar de nosso “sonho dogmático” da concorrência perfeita, do equilíbrio e da possibilidade de prever as ações dos indivíduos.

O que foi que Mises escreveu?

“Mises argumentou que a economia era uma ciência a priori. A economia é fundamentalmente diferente das ciências naturais, em termos de assunto, o método e o tipo de afirmações que pode fazer. As ciências naturais são (principalmente, pelo menos) ciências empíricas (a posteriori em oposição a a priori). Economia não é uma ciência empírica. Ela não descobre as regularidades que constituem suas leis através da observação (por exemplo, o levantamento e a interpretação de dados estatísticos) ou experiências de laboratório (difícil na economia), mas por meio de dedução lógica cuidadosa de certas proposições de partida (axiomas), embora alguma observação pode estar envolvida no estabelecimento dessas proposições iniciais. Porque não é uma ciência empírica, não faz previsões empíricas e suas teses fundamentais não são testáveis por meios empíricos. (SCHLICHTER, 2014)”

É por pensar a economia como uma ciência a priori que a escola austríaca constantemente aponta o problema da economia contemporânea e suas pretensões de previsão através da estatística. A questão da matemática na escola austríaca foi bem pontuada por Jesus Huerta de Soto (2010, p. 25):

“O formalismo matemático é particularmente adequado para descrever os estados de equilíbrio estudados pelos neoclássicos, mas não permite incorporar a realidade subjetiva do tempo nem a criatividade empresarial, que são características essenciais do discurso analítico dos teóricos da Escola Austríaca.  Talvez Hans Mayer tenha resumido melhor que ninguém as insuficiências da utilização do formalismo matemático na economia quando escreveu que “em essência, produz-se no coração das teorias matemáticas do equilíbrio uma ficção imanente, mais ou menos camuflada: de fato, todas elas relacionam, mediante equações simultâneas, magnitudes não simultâneas, que apenas surgem numa sequência genético-causal, como se estas existissem juntas em qualquer momento.  Desta forma, o ponto de vista estático sincroniza os acontecimentos, quando o que existe na realidade é um processo dinâmico; no entanto, não se pode considerar um processo genético em termos estáticos sem eliminar precisamente a sua característica mais importante”

Ao que se segue:

“Em suma, para os austríacos, o uso da matemática na economia tem resultados nefastos porque as mesmas unem sincronicamente magnitudes que são heterogêneas do ponto de vista temporal e da criatividade empresarial . Por esta mesma razão, para os economistas austríacos, não têm sentido os critérios axiomáticos de racionalidade utilizados pelos seus colegas neoclássicos.  Com efeito, se alguém prefere A a B e B a C, pode perfeitamente preferir C a A, sem deixar de ser “racional” ou coerente, bastando para tal que, simplesmente, tenha mudado de opinião (mesmo que a mudança de opinião se dê durante o centésimo de segundo que dure o seu próprio raciocínio sobre este problema).  Para os economistas austríacos, os critérios neoclássicos de racionalidade confundem o conceito de constância com o conceito de coerência“. (Idem, grifos no original)

Não é por preguiça ou incapacidade que os austríacos fazem pouca econometria, como suscita Novaes. É porque os “graus de confiança” continuam sendo não confiáveis. Já dizia Dino Segrè que matematicamente “se eu comi um frango e tu não comeste nenhum, teremos comido, em média, meio frango cada um”.

Para Novaes (2014), o fato dos austríacos se oporem aos chicaguistas reside na “preferência e precedência da ideologia libertária sobre o estudo imparcial, sem julgamentos de valor, da Economia positiva”. Afirmar isto é desconhecer o pensamento de Mises. Seria possível aplicar tal análise rasa em austríacos como Rothbard, muito mais apegado à teoria libertária e seus fundamentos filosóficos. Entretanto, é fato que a econometria serve apenas para os economistas realizarem engenharia social, o que os austríacos demonstram ser uma tremenda irracionalidade. Ao tentar controlar a economia depara-se com o problema do cálculo e com o problema do conhecimento disperso. Os austríacos identificam os protagonistas dos processos sociais como sendo os empresários, que numa realidade não previsível antecipam as ações, conseguindo satisfazer demandas.

Apesar disto tudo, afirmar que austríacos não entendem de matemática é ignorar diversos trabalhos quantitativos feitos sob uma perspectiva austríaca, como Free Banking in Britain (1984) de Lawrence H. White, The Theory of Free Banking (1988) e Banking Deregulation and Monetary Order (1996) de George A. Selgin, a dissertação de doutorado Hayek’s Theory of the Trade Cycle: The Evidence from the Time Series (1984) de Charles E. Wainhouse, The Recession and Austrian Business Cycle Theory: An Empirical Perspective (1993) de William A. Butos e The Structure of Production (1990) de Mark Skousen[3].

Há muita pretensão para com a matemática. Como bem apontou Detlev Schlichter (2014), não podemos fazer duas coisas em economia “Nós nem podemos verificar nem falsificar as leis a priori da economia […]. Ainda mais importante […], não podemos derivar as leis da economia de mera observação, e isso inclui até mesmo a mais extensa coleção de dados e as mais elaboradas e sofisticadas análises.” Os estudos quantitativos realizados pelos austríacos não formam as leis econômicas, eles também não “provam” as leis econômicas. O pudim já existe, independente de ter sido provado.

Ainda é preciso comentar que há diversas discussões internas na escola austríaca acerca do apriorismo metodológico.

“Mises e Rothbard [discordam] quanto à natureza “empírica” dos axiomas […]. Rothbard acredita que os axiomas da praxeologia são derivados da realidade cotidiana humana, isto é, que o mundo possui uma estrutura lógica inteligível ao ser humano (“reflexionismo”), enquanto Mises acredita que a mente humana analisa o mundo de forma lógica devido a sua própria constituição (“imposicionismo”). […] Roderick Long […] considera ter “transcendido” tal controvérsia: “the logicality of thought does not reflect the logicality of reality, but it does presuppose it”. Além disso, Hoppe […] considera que ações representam uma ponte entre o mundo das ideias e o mundo concreto, conferindo validade empírica ao conhecimento praxeológico”. (ARROYO, 2010, p. 26)

A última crítica para os austríacos recai sobre a TACE (Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos). Robert Murphy, em resposta a Paul Krugman, desenhou didaticamente o funcionamento da teoria dos ciclos aplicada à realidade em Paul Krugman, a atual crise, sushis e a importância da teoria do capital. Além disto, a crise de 2008 foi antecipada por Peter Shiff, economista seguidor da escola austríaca, que em rede nacional previu a crise em 2006. (Assista aqui.)

Novaes ainda afirma que “confrontada com tudo o que foi feito pela mainstream economics, principalmente a partir da Grande Guerra, a Escola Austríaca mostra-se, simplesmente, desimportante”. O desconhecimento de algo não constitui argumento para a não importância. Autores como Lachmann, Kirzner e Rothbard contribuíram, e muito, para o debate econômico. A marginalidade se dá por conta de uma obra rasa ou pela insistência em não abrir espaço para o debate que o pensamento austríaco proporciona?

*Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma instituição. Leciona disciplinas para os cursos de Pedagogia e Administração da Faculdade Sumaré e é editor-executivo da Bunker Editorial. Colabora com diversos institutos e publicações como Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB), Liberzone, Portal Libertarianismo (L+) e Estudantes Pela Liberdade (EPL), sobre temas referentes à educação, política e cotidiano. Foi tutor de formação do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL-SP) em 2013. Atuou como professor de Filosofia na Rede Estadual de Ensino de São Paulo durante 6 anos e colaborou com artigos sobre Filosofia para o portal Mundo Educação. Tem poesias publicadas em três antologias do Bar do Escritor

Referências Bibliográficas

ARROYO, Rafael Hotz. A Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos – Mais Uma Contribuição.  Monografia (Graduação para Ciências Econômicas) – Universidade de Campinas (UNICAMP),

Campinas, 2010.

DE SOTO, Jesus Huerta. A Escola Austríaca. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

MURPHY, Robert. A Escola de Chicago versus a Escola Austríaca. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 26 Jun. 2011. Disponível em: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1024 . Acesso em 04 Jul. 2014.

NOVAES, Rubem. Sobre a Escola Austríaca e Metodologia Econômica. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 30 Mai. 2014. Disponível em: http://www.institutoliberal.org.br/blog/sobre-escola-austriaca-e-metodologia-economica/ . Acesso em 04 Jul. 2014.

SCHLICHTER, Detlev. The a priori method in economics – In defence of Ludwig von Mises (essay). 09 Mai. 2014. Disponível em: http://detlevschlichter.com/2014/05/the-a-priori-method-in-economics-in-defence-of-ludwig-von-mises-essay/ . Acesso em 04 Jul. 2014.

[1]     Cf.: MURPHY, Robert. A Escola de Chicago versus a Escola Austríaca. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 26 Jun. 2011. Disponível em: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1024 .

[2]     Cf.: SHOSTAK, Frank. A “armadilha da liquidez” e seus problemas fictícios. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 27 Jan. 2012. Disponível em: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1211 .

[3]     Cf.: SKOUSEN, Mark. Vienna and Chicago: A Tale of Two Schools. Freeman, 01 Fev. 1998. Disponível em: http://www.fee.org/the_freeman/detail/vienna-and-chicago-a-tale-of-two-schools .

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2 comentários em “Sobre o mainstream econômico, ou uma resposta a Rubem Novaes

  • Avatar
    06/07/2014 em 12:14 pm
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    Muito interessante o texto. Estudei administração e economia na faculdade e somente fui conhecer a Escola Austríaca aos 40 anos…

    Na époce da faculdade gostava muito mais de microeconomia, não via muito sentido em macroeconomia e seus modelos em que uma variável fica fixa – apesar da mania que as variáveis tem de….variar !!! Microeconomia sempre fezmais sentido pra mim, me parecia algo mais palpável.

    Poderia ser dito que dentro da Escola Austríaca a macroeconomia simplesmente não existe? Sendo assim, os economistas que temos hoje em dia lutariam com unhas e dentes contra isso, afinal se tornariam menos importantes que um astrólogo …

  • Avatar
    05/07/2014 em 6:59 am
    Permalink

    Ótimo texto.

Fechado para comentários.

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