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Série “Espiritualidade e Pensamento Liberal” – Catarina Rochamonte (Espiritualidade cristã / Filosofia de Bergson)

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bergson

(Esta entrevista faz parte da série “Espiritualidade e Pensamento Liberal”. Para entender a proposta da série, leia o texto de apresentação no seguinte link: “Série Espiritualidade e Pensamento Liberal” – Apresentação)

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Graduada em Filosofia pela UECE (Universidade Estadual do Ceará), mestre em Filosofia pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), doutoranda em Filosofia pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), Catarina Rochamonte é escritora e jornalista independente, além de uma querida colunista de nossa página, e gentilmente prestou sua colaboração para a nossa série com essa entrevista, em que mistura sua perspectiva espiritual particular com suas concepções filosóficas.

 

Primeiramente, começo pedindo que os entrevistados falem um pouco de suas próprias concepções de fé. Como você se define, nesse particular?

Sou cristã; mas falo mais em espiritualidade do que em religião. Dentre as religiões, sinto-me mais próxima do Espiritismo, muito embora respeite profundamente a religião católica, que é a religião da maior parte da minha família. De todo modo, minha fé foi uma busca, uma conquista. Minha adolescência foi fortemente marcada por duas coisas: a perda da minha mãe e a filosofia. Eu sempre busquei na filosofia respostas existenciais e, durante certo tempo, aceitei a visão de mundo schopenhaueriana, que é uma visão moral, porém pessimista e declaradamente atéia. Houve, portanto, uma conversão, no sentido próprio do termo, e essa conversão se deu a partir de elementos muito íntimos, de vivências bastante subjetivas, de experiências psíquicas muito profundas. Então eu precisei fazer uma transição dentro da própria filosofia, que já não fazia sentido para mim tendo em vista as fortes experiências que eu havia vivenciado. Foi então que eu descobri a filosofia de Henri Bergson e por meio dela aprendi a nomear e compreender a minha própria experiência, que chamo mística. Pelo exposto, compreende-se que eu queira dizer que sou espírita, mas que só isso não diz tudo, porque a filosofia está mais presente na minha vida do que a religião e é justamente como espiritualidade que eu compreendo a própria filosofia.

Poder-se-ia dizer então que você teria uma espiritualidade de referencial cristão, com forte predominância dos valores do Cristianismo sob um prisma filosófico, envolvendo nisso uma afinidade com o Espiritismo? Em que momento a política entra nessa história? Como e quando você formou as suas convicções nessa matéria?

Mais ou menos. A afinidade com o Espiritismo veio primeiramente da necessidade de lidar, de algum modo, com as minhas experiências psíquicas. Mas eu não me limitaria a dizer que a minha espiritualidade apenas tem um referencial cristão. Gostaria de enfatizar que ela é essencialmente cristã. Isso mesmo se eu levar em consideração todo o interesse que eu tive e tenho pela Yoga, que também tem sido importante no meu desenvolvimento espiritual. Sei que isso causa impressão em alguns ortodoxos, mas é como entendo. Quanto à política, há uma relação entre a filosofia grega e o surgimento da democracia. Isso é de conhecimento de todos e não causa muita polêmica. Pois bem, creio que há também uma relação entre filosofia grega, Cristianismo, democracia e liberdade. Não é bem uma relação, mas um continuum, um pensamento que eu entendo como ainda em movimento e que é a base da nossa civilização. Esta relação é estabelecida por aquele filósofo ao qual já me referi, Henri Bergson, em seu último livro: As duas fontes da moral e da religião. Lá ele diz que a democracia é de essência evangélica e que é a fraternidade que consegue irmanar dois conceitos tão díspares como igualdade e liberdade. Bergson também foi quem primeiro falou em sociedade aberta e sociedade fechada, termos depois popularizados por Karl Popper, mas sem a noção de mística que é fundamental em Bergson. Portanto, eu defendo as sociedades abertas e compreendo que tais só foram possíveis com o advento do Cristianismo, que promoveu o que Bergson chama de “abertura da moral”, uma moral que não é mais de um país ou de uma dada sociedade, mas uma moral da humanidade, um amor pela humanidade.

De fato causa impressão, mas o que mais importa aqui, e vale frisar isso, não é a maneira como determinado conceito é trabalhado pelas diferentes correntes (religiosas ou não), e sim a maneira por que o entrevistado enxerga a sua experiência individual com eles. Sendo assim, o que nos interessaria diretamente seria saber o que VOCÊ entende precisamente por “espiritualidade cristã” ou mesmo Cristianismo, e o que ele tem de original. Você já introduziu as implicações sociais e políticas, possivelmente desembocando nas idéias liberais, que adviriam tanto daí quanto da filosofia de Bergson. Poderia especificar as implicações filosóficas disso em questões como, por exemplo, a propriedade privada ou a responsabilidade individual?

Sobre a primeira pergunta, o que entendo por espiritualidade cristã: é uma espiritualidade que tem em Cristo o modelo, a meta e o sustentáculo moral. Mas podemos agora distinguir no interior do Cristianismo duas correntes: a teologia especulativa e a mística. Vejo grande valor nas duas, mas sinto-me mais cativada pela segunda. Quanto às implicações nos aspectos que você apontou, o cristão sabe que este mundo é injusto e sabe também que essa injustiça não se deve simplesmente a um determinado sistema. O cristão tem ainda uma moral que é absoluta e que não pode ser relativizada por nenhuma filosofia social, por mais justa que essa finalidade pareça. Ele pode e deve lutar contra as injustiças, mas talvez compreenda melhor que é preciso modificar o indivíduo para mudar a sociedade, e não forçar a sociedade contra o indivíduo.

“O cristão tem ainda uma moral que é absoluta e que não pode ser relativizada por nenhuma finalidade social, por mais justa que essa finalidade pareça.” Como fica esse posicionamento diante dos relativismos de muitos dos ditos “pensadores pós-modernos”, e diante de conceitos como a “moral revolucionária” de Trotsky?

É justamente essa a questão: não há “moral revolucionária”. A “moral revolucionária” não é moral. Tenho isso claro desde o primeiro semestre da faculdade de filosofia quando entrei em um debate sobre O Príncipe de Maquiavel. A polêmica era mais ou menos a seguinte: o monitor afirmava que não era correto dizer que as ações do príncipe eram imorais, na verdade elas apenas não eram pautadas por uma determinada moral: a moral cristã. Já eu insistia: eram imorais sim. Daí para a moral revolucionária de Trotsky, o processo é o mesmo: relativização de valores, absolutização dos fins que interessam. O texto de Trotsky A nossa moral e a deles é abjeto (as pessoas têm que entender que os intelectuais e mesmo os gênios escrevem coisas abjetas). Ali o crime é justificado em nome da causa revolucionária. De maneira semelhante, o crime da corrupção e sabe-se lá o que mais (vide caso Celso Daniel) é ainda hoje justificado por intelectuais e militantes do Partido dos Trabalhadores e congêneres. Prova disso é a frase, igualmente abjeta, de Gilberto Carvalho a defender o ex-tesoureiro do PT João Vaccari. Disse ele: “não é de moralismo que precisamos, mas de uma ética de acordo com o nosso projeto”. Nessa toada, perde-se cada vez mais a capacidade de distinguir o certo e o errado, mesmo quando isso salta aos olhos. Agora me explique como o Cristianismo poderia se coadunar com uma ideologia que defende um regime como o de Nicolás Maduro? Clama aos céus que a nossa presidente, mesmo diante das súplicas de mulheres fragilizadas com a prisão de seus maridos, tenha optado por receber em seu gabinete o narcotraficante que as persegue. Isso é incapacidade de distinguir o certo do errado. Falta de coragem para defender valores.

Dito isso, é preciso querer compreender quando eu afirmo que o cristão tem uma moral absoluta, porque eu me coloco automaticamente na condição de quem aceita a distinção feita por Bergson entre moral fechada e moral aberta, entre religião estática e religião dinâmica. Ou seja, eu sei que existe uma relação entre moral e poder, que existe algo na moral passível de uma genealogia do tipo nietzscheano, mas em um ensaio de juventude eu já ensaiava uma distinção entre o que chamei de Bem como um valor de primeira ordem e um bem histórico, humanamente instituído e sobejamente apregoado. Para este último, a crítica de Nietzsche ou qualquer outra de tipo relativista é imprescindível e talvez devastadora, mas em relação ao Bem que sentimos intimamente, que intuímos e que nos faz sofrer cada vez que nos afastamos dele, para esse valor, a crítica é inócua, porque esse Bem é amor, espiritualidade e paixão, em toda a profundidade que o próprio Nietzsche emprestou a essas palavras. Então é a esse absoluto que eu me refiro e é justamente a sua existência que nos permite julgar. E também condenar e, ainda, afirmar, por exemplo, que é hoje um dever moral combater algo tão terrível quanto o Estado Islâmico, dever esse que, no meu entender, não tem sido bem cumprido.

Que equívocos você enxerga que estão sendo cometidos em relação ao Estado Islâmico? Como você enxerga, partindo desse problema, a questão do Estado laico e da liberdade religiosa, e a maneira por que ela tem sido encarada pela humanidade nos dias de hoje?

Não entrarei aqui em detalhes sobre erros estratégicos no combate ao autoproclamado Estado Islâmico, porque nada entendo de estratégias de guerra. Mas acho que há uma timidez, para não dizer uma covardia do Ocidente nesse assunto. Os atos cometidos por esse grupo terrorista e por outros como o Boko Haram, que a ele se uniu, são de uma crueldade, de uma barbárie tão extremada, que eu ousaria chamar de mal absoluto, ou seja, deve ser combatido com a maior firmeza. Para mim não há relativização possível e, no entanto, tivemos a lastimável participação da nossa presidente na conferência da ONU, onde ela, em uma fala pueril e irresponsável, criticou os EUA e falou em diálogo com os terroristas. A referência ao belicismo ou ao imperialismo norte-americano ou europeu nesse contexto é de uma obtusidade e falta de clareza moral tremenda. É não enxergar que há o mal no indivíduo, que há o bem no indivíduo para além das questões políticas e sociais. É muito a mentalidade que o Flavio Morgenstern dissecou no seu texto Foucault e o elitismo dos coitadistas progressistas e em outros textos, referindo-se ao caso em que, em um estupro, ato covarde e imoral, faz-se referência à classe social ou, no caso de um médico esfaqueado, faz-se sempre menção à “realidade social”. Essa mentalidade vê o mal em um sistema econômico, mas não vê o mal nas pessoas, no indivíduo, no caráter, na alma…

Quanto ao Estado laico, ele não é a mesma coisa que um estado ateu. Um Estado laico é uma democracia liberal. Lembre-se da declaração do Primeiro Ministro do Reino Unido, David Cameron, na Páscoa desse ano: lá ele afirma, somos um país cristão, a despeito de sermos um Estado laico. Claro que a patrulha relativista, os intelectuais progressistas criticam a declaração, mas o fato é que hoje, nos países cristãos, há tolerância religiosa, enquanto os países islâmicos e a religião de Estado (o socialismo, o bolivarianismo, o comunismo) não são em absoluto tolerantes.

E você sente que a solução para isso – sobretudo nos países islâmicos, posto que nos socialistas o que há é uma perversão do próprio Ocidente -, passará pela penetração dessas ideias de matriz ocidental?

Essa pergunta é boa porque me dá a oportunidade de explicar algo importante: embora eu sempre faça referência ao Ocidente, o que precisa penetrar no mundo islâmico pode vir do próprio Oriente: é preciso que lá penetre a Espiritualidade. Veja a cultura budista, a cultura indiana, quantos exemplos de profunda espiritualidade, compaixão, amor pela humanidade… Que problemas essas culturas nos causam? Antes nos enriquecem. Mas as duas visões de mundo a que eu me referi, o fundamentalismo islâmico e a religião de Estado (comunismo), são destrutivas. Veja o que os monges tibetanos sofrem devido à intolerância dos comunistas chineses e veja também que a fúria dos terroristas islâmicos não é apenas contra os ocidentais, mas contra tudo aquilo que é contrário ao seu próprio fanatismo.

Ou os baháís no Irã.

Sim.

Isso acabou me lembrando de que não pedi que você conceituasse o que entende por “mística”.

Ah… Tem uma definição de mística que acho belíssima: “o místico é um adolescente do infinito”. A minha tese de doutorado é sobre isso. A minha referência na definição, no modo como eu compreendo a mística, principalmente a mística cristã, é o último livro de Bergson, já citado. O místico está relacionado com o impulso religioso e não com a forma como a religião se institui. Aqui há uma diferença entre religião estática e religião dinâmica. O místico só pertence circunstancialmente a uma dada religião; na verdade, ele é um canal por onde perpassa o ela que lhe vivifica.

Uma curiosidade, embora já talvez se afaste da questão espiritual (ou talvez nem tanto): noto em seus textos uma sensibilidade e uma preocupação apuradas com a questão venezuelana e bolivariana; alguma razão particular além da comoção humanitária? Identificação, talvez, pela relação direta daquela situação com a nossa? Receio de algo similar por aqui? A proximidade com esses episódios foi o que te motivou a nos brindar com seus artigos?

De fato, o que se passa na Venezuela é algo que me sensibiliza. Por todos os fatores que você citou. Há grandes conflitos pelo mundo afora, que nos tocam realmente, mas estamos falando de algo que acontece aqui do nosso lado com a conivência, o respaldo, o apoio do governo, de intelectuais, de alguns estudantes… Já falei isso uma vez em uma aula: o nazismo foi algo muito ruim, mas é raríssimo ver alguém no Brasil com uma suástica tatuada. O comunismo foi algo ruim e é muito comum ver pessoas tatuadas, vestindo camisas e expondo de todas as maneiras os símbolos que fazem referência a isso, como as imagens do Che ou a foice e o martelo. Essa é uma ideologia perniciosa que está viva ainda, infelizmente. O bolivarianismo é a tentativa de vivenciar a experiência socialista na América Latina e muitas pessoas ainda acham que isso é bom.

Do seu ponto de vista, a espiritualidade seria uma ferramenta efetiva para fazer frente a isso? Finalmente, como você é estudiosa de Filosofia: que autores e pensadores, além de Bergson, que articulam de alguma forma uma concepção social/política com espiritualidade ou religião você indicaria? E uma (talvez, difícil): qual você acredita ser o grande problema, a grande questão do nosso tempo?

Acredito firmemente que sim, que a espiritualidade é uma ferramenta efetiva. E digo mesmo espiritualidade, porque o fanatismo religioso só atrapalha. Não me ocorre de momento nenhum outro autor nesse sentido e talvez esse seja um grande problema. A própria filosofia está fechada, no meu entender. Está meio perdida entre as posturas niilistas, entre os debates meramente formais… Eu mesma tenho um grande desafio pela frente, que já estou enfrentando, pois estou tentando levar para o debate acadêmico uma concepção de espiritualidade, de mística, que não é muito comum. Essa articulação a que você se refere talvez seja o meu desafio pessoal, talvez seja uma busca minha. É sobre isso que eu quero refletir. Qual a grande questão do nosso tempo? Essa. A espiritualidade. Como apresentá-la sem dogmatismo, sem fanatismo, sem ingenuidade? As implicações políticas seriam enormes! Como um indivíduo cósmico, um indivíduo que se sabe um espírito em evolução, em maturação, olha para o mundo? Como um indivíduo que compreende que a sua estadia na Terra é uma oportunidade de aprendizado moral e intelectual se comporta? Não parece claro que todos esses políticos corruptos, mergulhados em seus milhões e bilhões roubados, enquanto o povo sofre, são todos loucos? É preciso tentar enxergar as coisas com o olhar da eternidade para compreender o quão pobres eles são.

 

 

 

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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