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O Salário como Preço do Trabalho e a Crise Aérea de 2006/2007

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Bourdin Burke *

Aproveitando o gancho do levante perpetrado por militares na Turquia, proponho rememorar um episódio ocorrido há quase dez anos no Brasil, que também consistiu em uma insurreição por parte de membros das Forças Armadas: a famigerada crise aérea, emanada a partir da tragédia do voo Gol-1907. As motivações dos dois eventos são muito díspares, contudo: enquanto o primeiro é movido, basicamente, pelo conflito entre aqueles que defendem o governo secular (laico) e os que apoiam a fusão entre religião (islâmica) e Estado naquele país, o segundo tratava-se de uma reivindicação de controladores de tráfego aéreo por condições adequadas de trabalho, não muito diferente de protestos realizados por outras categorias profissionais. Para melhor entender as raízes do “caos aéreo”, faz-se necessário proceder a uma abordagem sobre a formação de preços no mercado (e a correlata fixação de salários), bem como analisar o modelo de gestão do tráfego aéreo adotado no Brasil.

Basicamente, o preço de um determinado bem é definido pela relação entre oferta e demanda. A preferência subjetiva dos consumidores por certo produto desempenha papel crucial em sua valoração. Eis porque uma empresa pode captar bilhões “apenas” desenvolvendo um joguinho de celular: se todos que fazem o download do aplicativo consideram relevante o valor gerado pela companhia (diversão), então cada um deles estará contribuindo para elevação do preço das ações destaa empresa no mercado financeiro, na medida em que reforçam a demanda por seu produto.

No mesmo sentido, o trabalho prestado é também precificado pela sociedade de forma subjetiva, posto que a ela é facultado atribuir diferentes graus de importância a cada um dos ofícios. Pode parecer absurdo um jogador de futebol de alto nível ganhar mais do que um neurocirurgião, mas essa aparente incongruência é resultado do fato de que bilhões de pessoas no mundo podem usufruir simultaneamente do valor gerado (entretenimento) por um único jogador, especialmente a partir da evolução dos meios de transmissão (que transformaram o esporte em um negócio de cifras colossais), ao passo que o médico só pode operar um paciente por vez.

Ademais, por mais árdua que seja a formação de um profissional de medicina, ainda assim é mais provável serem formados novos “Ivos Pitanguys” do que surgirem novos “Pelés”, ou seja, o jogador diferenciado é mais raro do que um médico de destaque em sua área.

Outrossim, a relação entre os recursos que circulam em uma dada atividade econômica e o número de profissionais a serem remunerados também desempenha importante papel, uma vez que nenhum de nós (ao contrário do governo federal) possui uma máquina de imprimir dinheiro. É fácil observar tal conceito quando consideramos futebolistas de nosso país que não estão empregados em clubes de série “A”: 82% dos jogadores de futebol no Brasil recebem até dois salários mínimos, como decorrência da menos favorável relação entre capital e trabalhadores (menores patrocínios e maior número de jogadores) nas divisões inferiores.

Por fim, a demanda de um determinado setor por profissionais específicos influencia substancialmente os salários: como o Brasil forma poucos profissionais em Tecnologia da Informação, estes são muito procurados e valorizados, ao passo que, como há quase uma faculdade de Direito em cada esquina do país, advogados são trabalhadores com cotação em queda nos últimos anos.

E os salários fixados por lei? Bom, estes servem unicamente para causar desemprego, já que limitam a capacidade de contratação dos empregadores e costumam ser estabelecidos com base em critérios populistas, e não com lastro em aumento de produtividade das empresas. Basta sopesar que a Suécia não adota políticas de salário mínimo, e, ainda assim, as remunerações pagas são consideravelmente altas. Possivelmente os escandinavos tenham entendido que só existe uma maneira de elevar salários de forma sustentável, qual seja, aumentando o capital disponível em relação à população – façanha obtida com sucesso por uma das economias mais liberais do planeta: em 2015, sua renda per capita girou em torno de US$ 50.539, ao passo que no Brasil esbarrou em US$15,7 mil.

Pois bem: onde se encaixam os controladores de tráfego aéreo nesta conjuntura? Qual seria o valor gerado pelo trabalho deles? São, essencialmente, dois:

  • Segurança: Além do caráter óbvio deste atributo (preservação de vidas), um órgão de tráfego aéreo que consegue manter segura a porção de espaço aéreo sob sua incumbência (leia-se: com um baixo e aceitável número de incidentes – quando os requisitos mínimos de separação entre aeronaves são desrespeitados) contribui para que os passageiros confiem no sistema, possibilitando que cada vez mais pessoas que outrora não voavam por fobia de andar de avião passem a utilizar este meio de transporte;

 

  • Celeridade: Quando um órgão de controle consegue otimizar a fluidez do tráfego aéreo sob sua jurisdição, todos agradecem: a família que aguardava ansiosamente a visita do ente querido, a empresa que ansiava pela entrega da carga, o executivo que precisava chegar logo em São Paulo e concretizar uma transação milionária; o paciente que aguardava entre a vida e a morte a chegada de um coração para transplante.

 

Em decorrência da relevância do serviço prestado, usuários do sistema (as próprias empresas aérea entre eles) pagam altas taxas para sua utilização, fazendo com que muito capital circule na atividade econômica em questão.

 

Agora vejamos: o número de profissionais no setor seria demasiadamente alto, a ponto de impedir uma remuneração condizente? Negativo: entre militares (Força Aérea) e civis (Infraero), há cerca de apenas quatro mil controladores de tráfego aéreo no Brasil.

 

E quanto à oferta destes profissionais no mercado? Basta considerar que, normalmente, a capacitação básica (teoria e treinamento em simuladores) demora em torno de um ano, sendo necessário ainda estágio prático de aproximadamente mais seis meses, e veremos que a regra mundial é a escassez desses trabalhadores – especialmente porque, em países onde tal atividade é levada mais a sério, o índice de reprovação dos aspirantes é bastante alto, em decorrência da exigência de habilidades motoras e características psicológicas singulares.

 

Bom, tudo leva a crer, até aqui, que um controlador de tráfego aéreo no Brasil deveria e poderia receber um polpudo salário, até como forma de compensar o estresse de uma das profissões mais desgastantes que existem. Na Espanha, por exemplo, tais profissionais recebem mais que o dobro da média salarial da população. Todavia, na FAB, um profissional do ramo recebe o mesmo que um Sargento da banda de música responsável por tocar o bumbo, e a realidade na Infraero não é muito diferente. O que teria dado errado em nossa análise então?

 

A origem desta distorção está na hierarquia militar da Aeronáutica: como os controladores daquela instituição são Sargentos, é tido como inadmissível que sejam remunerados com soldo de Brigadeiro-do-Ar, sob o argumento que tal prática representaria quebra de hierarquia. Desta forma, com os salários de boa parte desses profissionais (em torno de 80% do total no país) pressionados artificialmente para baixo, os controladores da Infraero acabam precisando aceitar remunerações menores do que poderiam receber também.

Aliás, como o controle do tráfego aéreo, no Brasil, é atividade exclusiva do Estado, estes trabalhadores sequer tem a opção de, insatisfeitos com a relação de emprego, procurarem melhores oportunidades na “concorrência”, porque ela não existe. O fato de todos eles serem, obrigatoriamente, servidores ou empregados públicos, também gera outro conflito: tanto aqueles que laboram em órgãos cujo trabalho é extremamente complexo (como o Controle de Aproximação de São Paulo) e os que trabalham em locais onde o volume de tráfego é bem mais reduzido, percebem a mesma remuneração, visto que ocupam os mesmos cargos. Adivinhe se, neste cenário, alguém quer trabalhar em São Paulo? Obviamente, este fator faz com que justamente tais órgãos fiquem mais desfalcados de pessoal, comprometendo a segurança de quem voa.

Ressalte-se que o movimento reivindicatório que quase parou o país entre 2006 e 2007 não tinha como mote tão somente essa disparidade remuneratória, mas também clamava pela atualização dos equipamentos utilizados para visualização (radares) e comunicação ar-solo (frequências de rádio), e reclamava do baixo efetivo de controladores. A Aeronáutica, não estando submetida ao crivo de consumidores (como as empresas privadas estão), relegou os órgãos de controle, durante décadas, ao abandono, alocando recursos e pessoal em outros setores não afetos ao tráfego aéreo. A qualidade do serviço de proteção ao voo caiu muito neste período – mas isso não chega a ser motivo de dor de cabeça para um órgão público, não é mesmo?

Eis porque o principal objetivo dos “sargentos aloprados” (que nada mais fizeram do que passar a seguir padrões de segurança previstos e, até então, ignorados em nome da continuidade do serviço) era, justamente, a desmilitarização do setor (eufemismo para privatização), com a decorrente implantação de modelo semelhante ao adotado nos EUA, Inglaterra, Austrália… enfim, qualquer país poderia servir de paradigma, desde que não fossem Coréia do Norte, Eritréia, Etiópia e Somália – únicos do mundo, ao nosso lado, onde existe controle do tráfego aéreo civil sob responsabilidade de militares.

A consequência desta conjuntura, fortemente sentida nos órgãos de tráfego aéreo do Brasil, são os altíssimos índices de rotatividade, em uma atividade cuja complexidade justificaria, no mínimo, mesclar experiência com juventude. Experimente visitar uma torre qualquer no Brasil e constate, por si mesmo, o quão baixa é a média de idade dos controladores de tráfego aéreo. E não duvide: muitos estão apenas usando o trabalho como trampolim para empregos melhor remunerados.

Querem um bom exemplo? Igor Romário de Paula, um dos Delegados que compõe a equipe de investigação da Polícia Federal na operação Lavajato, trabalhou no Centro de Controle de Curitiba (Cindacta II) por muitos anos. Foi colega de profissão, na ocasião, deste escriba que vos fala, por sinal. E esse baixo tempo de permanência na profissão é um problema que não será equacionado enquanto o Estado brasileiro não parar de interferir na formação do “preço do trabalho” (o bom e velho salário) do controlador de tráfego aéreo. Até lá, não adianta apenas cobrar profissionalismo sem a devida contraprestação pecuniária. Como dizem os americanos, “show me the money”, ou então tchau!

 

 

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