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Nihil obstat – Quem limita os “limites da liberdade de expressão”?

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“O primeiro passo indispensável em direção à liberdade é a boa vontade de chamar as coisas pelo seu nome verdadeiro” – George Orwell

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Ainda após o segundo atentado terrorista ao pasquim francês Charlie Hebdo, iniciou-se o novo mantra progressista, afiançando: “Sou totalmente a favor da liberdade de expressão, mas…” – demarcando, é claro, que a pessoa não é a favor de tal liberdade.

Usualmente, tal apotegma vem seguido de uma explicação – “não se deve ofender as crenças alheias” – ou de uma escusa – “o atentado deveria suscitar um debate sobre os limites da liberdade de expressão”.

Há certos ouvidos que crêem nos recursos retóricos de um grupo dominante, e não na realidade na qual as palavras buscam referência. Para estes, falar em “regular” ou “limitar” soa agradável, enquanto o sinônimo “censura” é visualizado como algo que apenas seus inimigos imaginários ousam defender.

Todavia, há mesmo um debate que podemos fazer sobre os limites da liberdade de expressão. Na capa do último Charlie Hebdo aparecia o escritor Michel Houellebecq, e como já explicamos aqui, para entender o massacre, seus livros são leitura obrigatória, haja vista que seus livros tratam justamente de atentados terroristas no Ocidente e o crescimento do islamismo na França sob o discurso de fachada contra a suposta “extrema-direita” de Marine Le Pen. Isto antes do atentado.

No mesmo dia 7 de janeiro em que o mundo foi acordado com o massacre no Charlie Hebdo, era lançada a primeira edição de 2015 da revista The New Criterion, a revista cultural mais importante do mundo. Seu principal tema: a ameaça do fim da liberdade de expressão no Ocidente. Por qual motivo? O politicamente correto, que impede que se fale – ou mesmo se pense – livremente sobre qualquer assunto. Sobretudo graças ao conluio da esquerda ocidental com o islamismo.

Antevisão acertada? Não foi preciso mais do que algumas horas para comprovar cada linha da revista – e da importância de sua leitura.

 

Nomeando os agentes da história

censorshipMais fácil do que profetizar é emendar prognósticos ex post facto, embora para isto ainda seja necessário algo raro nas classes pensantes: analisar um fato histórico pelos seus agentes, sem recorrer a “classes” e abstrações.

Com isto, teremos um quadro que pode soar chocante: a despeito de Charlie Hebdo ser um jornaleco de extrema-esquerda, que tinha como principais alvos a direita francesa e as religiões, alvoreceu uma violenta campanha contra as “ofensas” do jornal que partiram… de pessoas de esquerda. Fosse a professora da USP Arlene Clemesha ou William Gonçalves, da UERJ, na Globo News, fosse Josh Zepps do HuffPost Live. Fosse o “clérigo muçulmano radical” Anjem Choudary no USA Today – para não falar de Richard Seymour na Jacobin, a revista comunista que originou o Occupy Wall Street, dando o tom novamente com a palavra a ser repetida (“islamofobia”) ou do PCO, que comemorou o ataque (mais exemplos na Reason).

A liberdade de expressão não pode, portanto, conviver com um sistema de economia controlada e centralizada.

Liberdade econômica significa poder produzir e vender o que se quiser, sem ter seus bens tomados por isto. Liberdade de expressão significa deixar as pessoas falarem o que quiser, sem usar o poder legal para calá-las. Em ambos os casos, coisas desagradáveis podem ocorrer – por exemplo, um escritor ruim vender mais do que um bom ou alguém dizer algo descortês. Mas ambas as liberdades não pressupõem um “mas”, ou uma possível punição ulterior, e sim o fato de que os melhores produtos e as melhores idéias vencem disputando livremente – e não é punindo as idéias e produtos ruins que teremos idéias e produtos bons. Produtos e qualidade de vida surgem, afinal, de idéias em circulação. O centralismo pressupõe uma única idéia, proibindo todas as outras.

É loucura, mas não é sem método que os agentes ligados à esquerda, agora, promovam uma caça às bruxas contra qualquer crítica a quem queira destruir as liberdades ocidentais. Millôr Fernandes lembrava que, quando livros devem ser queimados, o fogo passa sempre muito perto do autor.

O mesmo permanece válido para a crença “moderada” de que as pessoas podem falar o que quiserem, mas devem arcar com as conseqüências do que dizem. Caso não seja difamação ou calúnia, a ÚNICA “conseqüência” aceitável para algo impróprio dito são respostas, vaias ou ignorar. Nada mais é justificado em uma sociedade livre – do contrário, apenas estamos postergando a censura.

Talvez o mais importante libelo anti-censura do mundo, Areopagítica – Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento Inglês, de John Milton, sem que o autor teorizasse a tal subnível, é um texto que, a despeito das crenças do autor, se arvora justamente contra este centralismo. Milton teve um livro anterior censurado pela Parliamentary Ordinance for Printing, por ofender, o tempora, o mores, a religião. Seu crime fora o ensaio The Doctrine and Discipline of Divorce, em 1643, que advogava a favor do direito do divórcio.

Tal tema público (hoje diríamos “político”) afrontava a forma oficial do centralismo da época de gerir a sociedade. Como a Inglaterra ainda não havia inventado o liberalismo, não tinha como se apresentar como a melhor sociedade pela qualidade de vida em suas fronteiras (T. S. Eliot considerava até o público do teatro elisabetano “bárbaro”), tinha de manter seu poder à força – o que significa proibir até a discussão de alguma mudança.

Censura, afinal, é imobilismo, perpetuando o estado presente das coisas. Algo oposto ao liberalismo e, claro, ao conservadorismo – que, apesar de confundir quem não o conhece com o seu nome, significa conservar as leis eternas da vida e aprender com o passado, as tradições e costumes, e não forçar que o mundo (inclusive sua parcela revolucionária) permaneça como está. A proibição da ofensa (ou “blasfêmia”, em termos religiosos, sobretudo de religiões com imposições civis) é a cristalização do presente. “Não ofender” é um eufemismo para se aceitar, obedecer e considerar algo bom e correto porque é assim. Por trás do discurso sobre “debater o respeito ao outro”, reside a grande verdade: censura, tal como armas nas mãos de policiais, serve para governantes protegerem a si próprios, e não a nós, comuns mortais, uns dos outros.

É o velho paradoxo dos revolucionários: não se tornam “conservadores” assim que a revolução é consumada, e sim tentam estacionar o tempo assim que tomam o poder.

 

Quem limita os limitadores da liberdade?

Nos tempos de Milton, o que queria o poder central era uma sociedade sem divórcio – ou, mais, sem que se discutisse o divórcio. Com o puritano Hebert Palmer, são criadas “diligências” para proibir livros contra a imortalidade da alma e sobre divórcio. O mesmo mundo dos que querem “a liberdade de expressão, mas que se arque com as conseqüências”.

É fácil definir uma sociedade “justa” com tais floreios semânticos, mas como seria a realidade se tal princípio fosse aplicado? O que fosse “ofensivo” faria seu autor sofrer punições. E como definir o que é ofensivo? É praticamente impossível falar – ou pensar – algo que não seja ofensivo a alguém. E no Reino da Hipersensibilidade, os mais abaladiços têm poder sobre quem tem maturidade.

guy-fawkesNão é à toa que um dia a esquerda revolucionária era composta de homens de farda discutindo revolução em casernas – o novo, o forte, a vanguarda, o modernista que cospe na tradição, o inevitável. Depois de Foucault, Marcuse, Derrida e Fanon, tornou-se um tripé de feminismo, homofobia e racismo a se ofender delicadamente com absolutamente qualquer coisa. Os fanáticos teocráticos do califado mundial islâmico, assim, se tornam sua infantaria para combater a liberdade plural e impor a revolução centralista.

Assim que as mesmas pessoas progressistas, que ontem tomavam ruas vestidas com a máscara de Guy Fawkes e repetindo o bordão anarquista do filme V de Vingança (“As pessoas não devem temer os governantes, os governantes que devem temer as pessoas”), agora roboticamente quer “respeito”.

Se a sociedade livre alicerceia sua liberdade fiando-se de que a diversidade de idéias produz melhores idéias, a sociedade da “ofensa” crê religiosamente na Infalibidade do Censor – o que ele considera ofensivo ao poder central, capaz de trazer igualdade (econômica ou de crenças) à força, ofensivo é. E quem verifica o quanto um censor pode ser ofensivo? Para haver tal compensação, seria preciso voltar, justamente, ao império da livre circulação de idéias. Curiosamente, não é desacreditando na infalibilidade do sistema jurídico que se critica a pena de morte? Por que confiar tanto nela agora?

Por que a liberdade funciona

Don Wolfe, na New Criterion, lembra que mais do que ofensa, o que incomoda verdadeiramente quem quer um plano para toda a sociedade é um indivíduo sozinho que reflete sobre casamento, educação, economia, filosofia. Esta desigualdade de pensamentos é que incomoda, e sempre querem substituí-la a muque pela planificação – sob eufemismos como “respeito”, “politicamente correto” ou, ironia das ironias, “diversidade”.

Quando há descaso, apatia e desinteresse geral por tudo, a censura não precisa mais se impor. Contudo, heterogênea como a realidade é, tal planificação tem sempre de ser reforçada.

Desde a Inquisição, a mãe da censura com o Index Librorum Prohibitorum, temos esta tecnologia que impede idéias “erradas”. A Inquisição acabou e é criticada, mas a tecnologia permanece. Eram os religiosos superiores medievais que decidiam se um livro poderia ser impresso (Imprimi potest), passando então ao Censor que promulgava um nihil obstat em matéria de doutrina ou erro moral ao livro que, com um selo do bispo, então, poderia ser impresso (Imprimatur).

Milton, que tinha ojeriza dos católicos sobretudo por isso, argumenta com brios que muito mais bons livros foram silenciados do que maus. Os catálogos expurgatórios da Inquisição devassaram escritores em “um ultraje pior do que a violação de seus túmulos”. Ela não se limitava à heresia: “tratavam de todo assunto que não fosse do gosto deles, ou decretavam uma interdição ou transferiam o caso diretamente para o purgatório de um novo Index”.

Já num mundo de internet, se barra completamente a internet – algo comum tanto aos regimes “sociais” que vão de Cuba à Coréia do Norte quanto aos islamofascistas interessados no califado mundial, com o eurasianismo de Vladimir Putin no meio, a financiar ambos os lados, até o projeto do “Marco Civil da Internet” brasileiro.

Quando não se consegue tal poder físico de coerção desabridamente (o que os romanos chamam de potentia, em oposição ao poder legal, potestas), fica-se com a coação tanto do terrorismo quanto a mais sutil, que vai impondo-nos uma auto-censura até aos nossos pensamentos – como Douglas Murray dilucida tão bem no auspicioso último número da New Criterion. Assim, como declara Milton em sua Areopagítica, consegue-se “estender à vista dos homens o mesmo despotismo que já haviam imposto às suas mentes”.

É o controle sutil da palavra, que sempre vai amoldando as mentes não apenas do vulgo para ver apenas aquilo que as classes falantes enxergam – como a nova ascensão de uma suposta onda de “islamofobia”, que até o presente momento matou apenas… inimigos do islã, pelas mãos de muçulmanos.

Como declarou Roger Kimball, editor da New Criterion na government-censorshipintrodução do último número (Free Speech Under Threat), é cada vez mais difícil descrever o terrorismo islâmico como… terrorismo islâmico. A despeito da crença de que estamos ficando mais livres com o progresso do tempo, hoje, com o controle da linguagem e pensamento dos progressistas, estamos muito menos livres para falar e pensar do que há 50 anos ou mesmo um século. Em suas sábias palavras: “O triunfo do politicamente correto tem incentivado uma alergia epidêmica à franqueza. A esperança é que abraçar eufemismos irá alterar não só a nossa língua, mas também a realidade que nossa língua nomeia”.

Com a linguagem manipulada, qualquer sátira, qualquer ironia, qualquer humor – e mesmo qualquer franqueza se perde na novilíngua, na “não-ofensa”. Não foi apenas Orwell que exclamou Bilinguis maledictus – maldito o homem de duas línguas, esta mantícora que quer proibir os duplos sentidos, dando dois sentidos ao que quer impor.

Sem saber quem será ofendido e qual o grau de susceptibilidade e carolismo de nossos futuros censores, a priori ou a posteriori, somos escravos não do “respeito”, mas da arbitrariedade – obedecemos apenas à vontade intempestiva e irascível de quem, por ventura, ouse não gostar do que escrevemos, pensamos ou somos. São estes que permitirão que sejamos o que somos se e somente se nihil obstat.

Sob este subterfúgio dos bordões repetidos bovinamente, os progressistas far-nos-ão retroagir aos piores porões da Idade das Trevas. Como já afirmava o adágio latino, quam temere in nosmet legem sancimus iniquam – com que rapidez sancionamos uma lei que vai contra nós!

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern

Analista político, palestrante e tradutor. Escreve para o jornal Gazeta do Povo , além de sites como Implicante e Instituto Millenium. Lançou seu primeiro pela editora Record Por trás da máscara, sobre os protestos de 2013.

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