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Nelson Werneck Sodré: a paranoia do “imperialismo” em um militar marxista

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Nelson Werneck Sodré
Nelson Werneck Sodré

Decidi encarar a leitura, por estes dias, de um pequeno livro com que fui presenteado há algum tempo e que havia deixado em repouso absoluto na estante: Desenvolvimento Brasileiro e Luta pela Cultura Nacional, publicado em 2010. Trata-se de uma seleta de textos da lavra de Nelson Werneck Sodré (1911-1999), organizados por Olga, sua filha. Sodré, um dos nomes mais enaltecidos no panteão de figuras “sacrossantas” e intocáveis da esquerda brasileira, representava uma combinação que, hoje, com a interpretação reducionista culturalmente disseminada, pareceria improvável: um militar de referencial confessada e profundamente marxista. Nada menos que o grande líder comunista Luís Carlos Prestes, porém, já havia cumprido esse papel anteriormente. Sodré, filosoficamente mais articulado, foi militante e delineador de pensamentos que, como diz o prefaciador Mário Theodoro, balizaram o “debate no seio do Partido Comunista do Brasil, o que o faz ser considerado um dos mais expressivos intelectuais orgânicos brasileiros”.

Os textos elencados, que têm muito a ver com os temas de que Sodré se ocupava no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) – um verdadeiro núcleo de pensadores nacionalistas e desenvolvimentistas que se formou durante o governo Juscelino Kubitschek -, são uma amostra que nos faz pensar bastante na necessidade de compreendermos os fundamentos frágeis das idéias “do outro lado”. Já no texto de apresentação, redigido por Olga, encontro o seguinte trecho: “mesmo não estando de acordo ou divergindo do enfoque ou de algumas abordagens dele, não se pode desacreditá-lo simplesmente por ter escolhido um caminho teórico e metodológico diverso ou por ter outra visão do trabalho intelectual. (…) é necessário, ao contrário, respeitar sua coerente opção pelo marxismo e pelo engajamento social do intelectual, levando em consideração sua intensa participação e seu papel de relevo nas pesquisas, análises e grandes debates de sua época”. Sempre que leio algo assim, fico pensando se quem escreveu respeitaria a “coerente opção” e o “engajamento social do intelectual”, se o dito cujo fosse libertário, liberal-conservador ou adorador do unicórnio rosa, ou se isso só vale para esquerdistas.desenvolvimento

Todas as teses de Sodré selecionadas no livreto, sem nenhum medo de estar sendo atrevido ou ousado em afirmar, são entremeadas por uma espécie de “proto-petismo” infantil, que mostra que o “jogo” das esquerdas nacionais é intelectualmente gestado há décadas, em formatações que embasam o que se tenta implementar hoje. Muitos dos conceitos com que ele trabalha são espelhados atualmente – e falo com conhecimento de causa – em materiais didáticos e conteúdos lecionados em escolas e universidades de todo o país como se fossem “conhecimento”, quando, em realidade, são aplicações esclerosadas da paranoia marxista, com ares de ciência.

A obra se divide em quatro partes. Na primeira, Capitalismo e Revolução Burguesa do Brasil, Sodré tenta traçar uma síntese da história nacional a partir dos chamados “modos de produção”, comparando, restringindo-se a esse linguajar marxista e economicista, as movimentações sociais no país ao que se sucedeu na Europa. Aponta singularidades e a convivência de regimes econômicos e sociais divergentes no mesmo país, durante certo tempo, até alcançar a revolução de 30, com a ascensão de Vargas ao poder, o que teria sido, na percepção de Sodré, “um episódio da revolução burguesa no Brasil”. Aqui, recorre ao velho discurso esquerdista, típico de aulas de Ensino Médio, segundo o qual o fascismo, com sua essência profundamente antiliberal, surgiria do interesse capitalista de resistir ao advento do socialismo e “assegurar a via prussiana e a exploração cômoda e pacífica da força de trabalho”(sic). A sociedade, sob essa perspectiva, está sempre dividida em “classes” alimentadas pelas suas “ideologias particulares”, criando-se um abismo completamente fantasioso entre as pessoas por conta da sua quantidade de renda temporalmente localizada.

Vargas teria sido, para Sodré, a liderança burguesa que, na fase propícia, lutou por um modelo de desenvolvimento nacionalista, mas acabou perseguida e boicotada pela sanha “imperialista”. O conceito de “imperialismo” é o que ele destrincha na segunda parte, A farsa do Neoliberalismo, uma saraivada de clichês de fazer corarem as inteligências mais razoáveis. O imperialismo seria a profunda dominação cultural e econômica dos centros desenvolvidos (os EUA, sobretudo) sobre os países que ainda buscavam seu desenvolvimento, e se manifestaria sob a face do tal “neoliberalismo” – para Sodré, um falso arauto da modernidade, que tudo solucionaria a partir do “fundamentalismo de mercado”e da “privatização”.

Os “Chicago boys de nossos dias”, como Sodré chama os economistas liberais, debochavam da “soberania nacional”, alegando conceitos vazios (?) como o de “civilização cristã e ocidental”, para se alinhar economicamente e culturalmente ao bloco dos Estados Unidos e desprezar os anseios por um desenvolvimento que tivesse bases nacionais – em outras palavras, protecionismo e estatização. Quem se importa com eficiência? Bom mesmo é esbanjar o que é “nosso” – “nosso” quer dizer, ontem como hoje, na realidade, dos “companheiros”e não do povo, como a Petrobras nos tem demonstrado tão bem. O resto são páginas e páginas descrevendo como os “neoliberais” desejam destruir o Brasil e submeter seu território, suas riquezas naturais e seu povo “aos interesses de uma dominação colonialista anacrônica”e bla, bla, bla. Por mais de uma vez, ele tem a inacreditável coragem de comparar o tal de “neoliberalismo” com o totalitarismo nacional-socialista, muito mais próximo do totalitarismo soviético comunista que da pluralidade e liberdade exaltadas pelos defensores do capitalismo liberal. O neoliberalismo seria culpado, diz ele, por um “renascimento do fascismo e do nazismo, de todas as formas de violência contra o homem que pareciam superadas”. Uma tal declaração é de uma canalhice tão lunática que mal conseguimos articular refutação.

A terceira parte, Desenvolvimento cultural brasileiro, é um alerta para os “terríveis perigos das teias do imperialismo” na cultura de massa, submetendo-nos ao “esmagamento da nossa herança cultural”; a partir daí, opinando sobre diferentes modalidades artísticas, em geral, Sodré pontua que a culpa por todos os problemas nesses setores se deve, ou aos americanos e sua opressão por meio do maldito capitalismo, ou à falta de apoio do Estado, que deveria gerir, controlar e fornecer os recursos econômicos para essas atividades, a fim de patrocinar a “grandeza nacional”. Vargas e Sodré se entenderiam muito bem, apesar de o primeiro ser antimarxista; da mesma forma, as teses do militar comunista seriam simpáticas ao PT e seus artistas financiados por somas vultosas, especialmente via Lei Rouanet, para paparicar o governo esquerdista e sistematicamente corrupto – o que, com todo o respeito a alguns sociais democratas mais razoáveis, normalmente acaba sendo redundância. A arte, para Sodré, não atinge completamente o seu valor se não for engajada, se não estiver a serviço de uma agenda ideológica. Nacionalista e esquerdista, naturalmente.

A coisa piora quando ele fala das universidades e diz que o “imperialismo” também estende suas teias sobre elas, procurando transformá-las em “fábricas” de mão-de-obra para o mercado. Em tempos em que vários cursos de Humanidades se transformaram em “sessões de descarrego” do capitalismo e culto explícito a São Marx, a alucinada análise de Sodré se torna uma perfeita inversão da realidade. Na quarta e última parte do livro, Luta pela cultura, Sodré fala mais objetivamente de si mesmo e de sua trajetória, citando trechos de veículos jornalísticos manifestando-se elogiosamente ou criticamente a seu respeito. Destaco a citação de Carlos Lacerda, o grande tribuno udenista, que, referindo-se a Sodré e ao ISEB, diz que a cultura que despejam “na facúndia de seus teóricos, é um ‘cocktail’ de marxismo com autores americanos competentemente sacudidos para dar um precipitado róseo, com algumas gotas de impostura intelectual”. De Sodré, dizia que era um “oficial com tintas literárias, ainda mais confuso do que inteligente, com uma cultura deformada pelo preconceito de um velho marxismo encabulado e cauteloso” e que, apesar de ser um “homem de talento”, “se não é comunista, desses que andam pichando parede, é, pelo menos, dos que contribuem para o pichamento da alma nacional”.

Lamentavelmente, diante do que li, sou obrigado a concordar, mas, justamente por isso, a recomendar – e recomendar para mim mesmo, que não me posso colocar entre os poucos a apresentar um conhecimento tão aprofundado dos “medalhões” teóricos do “outro lado da moeda” – que esse e outros autores de sua estirpe sejam lidos. É importante que nós mergulhemos, superando as compreensíveis impaciências, nos textos que expressam as crenças amalucadas e as estratégias dos esquerdistas, a fim de conseguirmos reconstruir seus passos até aqui – muito mais bem-sucedidos do que gostaríamos, em termos de obtenção e controle do poder – e compreender melhor a realidade que queremos mudar.

 

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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